12 de agosto de 2008

Karl Marx matou o pai e foi escrever "O Capital"

Há viventes e observadores - diz Evaldo Cabral de Melo, para classificar os humanos (que, para mim, se dividem entre os que classificam os humanos em dois tipos e os que não classificam. Eu sou do segundo tipo). Os viventes fazem a economia, a política, os esportes e as tragédias. Ganham dinheiro, poder, medalhas e inimigos. Imersos no real como se este fosse a sua pele, são o próprio real. São a maioria. Escriturários, farmacêuticos, beques-centrais, xeques, síndicos, mafiosos, investidores, mecânicos e aristocratas. Se você acha que esse é o único tipo de gente que existe, você é vivente. Os observadores olham, analisam, questionam, divagam, criam mundos impalpáveis a partir ou apesar dos viventes. Não têm desenvoltura para emitir um cheque ou vender um carro - que dirá estruturar uma aliança de partidos ou um fundo de direitos creditórios! Olham o real como a uma roupa: externa a eles, terão que usá-la, nem sempre com caimento adequado. Filósofos, críticos, poetas, antropólogos, comentaristas, astrônomos e psicanalistas. Se você se pergunta o que os faz assim, você é observador. Viventes constroem o real para eles e para os observadores, mas não sabem por quê. E observadores costuram um outro real, que é a malha de interpretações para as ações dos viventes - e esta malha vira uma roupa a vestir a pele de todos e nela entranhar-se. A ponto de a realidade não se distinguir entre pele e roupa. E de o real dos viventes ser marchetado pelo real dos observadores. E de as idéias dos observadores terem a forma dos viventes. Se o texto está complicado e chato, piora daqui para a frente.

Marshall Berman é um dos grandes observadores que admiro. Seu "Tudo que é sólido desmancha no ar": a aventura da modernidade (Companhia das Letras, 1986) é fundamental. Analisa a matéria e as idéias com a mesma argúcia; economia, política e arquitetura, na dimensão material; obras, autores, símbolos e intérpretes, na dimensão ideológica. Mas o que o traz aqui é "Aventuras no marxismo" (Companhia das Letras, 2001). Sem perceber, ou gritando numa freqüência que só ouvidos cúmplices o podem ouvir, Berman descama Marx como quem esfola a própria pele. A água fervente com que o faz é o livro de J. Seigel: "Marx’s fate: the shape of a life" (Princeton University Press, 1978).

Berman nos mostra Marx contestando o idealismo de Hegel e rumando em direção ao mundo real como quem contesta psicanaliticamente o pai - ao mesmo tempo em que atende psicanaliticamente ao pai de fato, que o queria ligado à vida real e não às idéias. Daí não caber mais aos filósofos interpretar o mundo e sim transformá-lo. Daí o materialismo histórico e a suspeição da ideologia. Mas nos mostra também que Marx, atendendo a Hegel e contestando ao pai - psicanaliticamente -, se embebe pelo mundo das idéias de forma tão repleta que sua vida material se faz miserável e sua obra se faz monumental. "O Capital" vem a ser a simbiose, a metalíngua, entre a realidade e as idéias do autor: o mundo real é traduzido e construído por suas idéias; e suas idéias vão desconstruir esse mundo, que não lhe cai bem. Agora eu estendo o fio: é sua obra intelectual, que rejeita o mundo real tal como ele é, que lhe dá identidade, existência e permanência - como a quem mata os pais; mas é também sua obra que, no plano material, o consome e arruína - como pais aos filhos que não os matam. Despelado, em carne viva, Marx fica parecendo uma metáfora de Berman sobre si mesmo.



Na introdução do livro, ele contara a história da morte prematura do pai, um vivente pobre, camelô, engolido pela dureza dos negócios, das traições e da economia de escala. E contara também como ele, Berman, mergulhou nas idéias como aluno, professor, escritor. Matéria, idéias, pai, morte, identidade: até aqui Berman, sem dizê-lo, parece perceber ou tecer relações. O que lhe parece fugir é a coincidência do fenômeno que o tirou do mundo de negócios do pai e o lançou ao mundo das idéias: o fato de ter se deslumbrado, aos 18 anos, justamente com um livro de Marx. E mais: é às idéias - e à vida - de Marx que ele tem dedicado sua vida - e suas idéias - desde então. Marx é para ele o que "O Capital" foi para Marx. Sem a parte da ruína na vida material.
kicker: Nas obras de Marshall Berman, o filósofo parece uma metáfora de si mesmo (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 3).
LUIZ GUILHERME PIVA* - Diretor-técnico da LCA Consultores. Próximo artigo do autor em 2 de setembro).


Colaboração: Rodney Eloy

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