7 de novembro de 2008

Prefácio a Ilíada de Homero - Por Augusto Magne

A PESSOA de Homero está para sempre imersa nas trevas impenetráveis da lenda. Ignoramos quando viveu; não sabemos que terra privilegiada lhe ouviu os primeiros vagidos. Apenas nos conta que várias cidades da Iónia — e outras ainda — disputavam entre si honra tão subida. Uma tradição mais per­sistente e quiçá menos remota da verdade o dava como natural de Esmirna, onde teria nascido por volta do século IX ou VIII antes de Cristo; dizia mais que, embora natural de Esmirna, exercera a maior parte de sua atividade na ilha próxima de Ouios, onde, efectivamente, em tempos históricos, lhe era pres­tado culto, e que mantinha uma escola de rapsodos chamados Homéridas, ou seja "descendentes de Homero". Venerandas tradições representavam-no como um velho cantor, pobre e cego que, peregrinando de terra em terra, recompensava a quem o agasalhava com a declamação dos seus poemas. Mas este quadro é pura fantasia a que não corresponde personalidade individual. É apenas a figura idealizada dos rapsodos perambulantes, de que Homero era tido como protótipo.

Se da pessoa do poeta nada sabemos, não é menos impene­trável o véu que encobre a composição dos poemas e sua autoria. Com efeito, já entre os antigos havia profundo desacordo no tocante às obras de que Homero teria sido autor; duvidavam se eram dele tanto a Ilíada como a Odisséia, ou apenas um destes dois poemas; e bem assim se lhe pertenciam ou eram de outros poetas as epopéias que integram o chamado ciclo épico — a Tebaida, os Epígonos, os Cantos Cíprios.

Tudo isto deu origem a um grave problema, a que se costuma dar o nome de "questão homérica", problema que deita as suas raízes já na própria antigüidade e que tem por objeto delimitar a produção genuína de Homero. A princípio, além dos Hinos e de poemas menores como o Margites e a. Batracomiomaquia, eram, sem discriminação alguma, atribuídos a Homero quase todos os poemas do ciclo épico. Assim, por exemplo, o poeta elegíaco Calino, que viveu no século VII antes de Cristo, dava Homero como autor da Tebaida. Mas com o despertar da crítica entre os próprios Gregos, aos poucos o cenário se foi modificando, devido, cm especial, a influência dos sofistas e dos historiadores iónio-áticos no século V A.C., e ao ensino dos gra­máticos alexandrinos. Heródoto, por exemplo, atribuía ainda a Homero a Tebaida, mas hesitava quanto aos Epígonos e aos Cantos Cíprios.

Só no século IV, em princípio do período alexandrino, o patrimônio de Homero ficou geralmente restringido à Ilíada e à Odisséia, não tanto por motivos históricos quanto em virtude de considerações estéticas: os poemas do Ciclo eram apreendidos como obra de arte inferior e produto de inspiração diferente. Mas, dentre os gramáticos alexandrinos, alguns, como Zenão e Helânico — impugnados, a este respeito, por seu ilustre contem­porâneo Aristarco de Samotrácia — foram mais longe e chegaram a negar a Homero a própria Odisséia, por este poema lhes parecer mais recente que a Ilíada; separavam, pois, uma da outra as duas grandes epopéias, sendo, por isso, alcunhados de "separatistas", Khorizontes. A maior parte dos outros gramáticos, seguindo na esteira do celebérrimo Aristarco, julgaram poder joeirar os poemas homéricos, e do elemento fundamental, ge­nuíno, separavam acréscimos adventícios e partes de autentici­dade controvertida, sem falar em interpolações de versos ou grupos de versos.

Reacesa nos tempos modernos, a questão homérica tomou novo aspecto, muito mais sério, cm conseqüência de pungente dúvida que fugira aos antigos — a dúvida relativa à própria existência pessoal de Homero. O primeiro cm levantar a sus­peita foi o abade francês Fr. Hedelin d’Aubignac em suas Conjecturas académiques ou dissertation sur l’lliade, publicadas cm 1715, mais de meio século após a morte do autor, e eme, naquela época, passaram quase por completo despercebidas. Seguiu-se lhe o italiano G. B. Vico em Scienza Nuova (1725) e finalmente, com mais apreciável resultado, Frederico Augusto Wolf, cujos Prolôgomena ad Homerum são de 1795. Todos eles, baseados cm razões históricas, filológieas ou estéticas, sustenta­ram e tentaram demonstrar, por processos embora diferentes, que os chamados poemas homéricos não constituem obra pessoal de determinado poeta, mas enfeixam numerosas composições de acdos anônimos e até mesmo do próprio povo grego em seu período lendário de gestas e heroísmo. Assim Homero foi redu­zido a mero símbolo e seu nome foi considerado seja como simplesmente alegórico, seja, quando muito, como o nome de um dos supostos autores primitivos, quiçá de todos o principal, seja, por fim, como o nome do compilador definitivo de rapsó­dias tradicionais.
A teoria era destinada a encontrar favorável acolhida nesse primeiro despertar do romanticismo, que, na poesia de épocas obscuras e barbáricas, descobria as manifestações da índole dos povos, a emancipação do estro popular, a geração espontânea das grandes epopéias nacionais.

Dos ensinamentos de Wolf surgiu toda uma escola de filólogos que desfrutaram incontestável predomínio no século XIX. Estes desagregaram em mil maneiras a unidade quer da Ilíada, quer da Odisséia, dominados pela obsessão de discriminar a contri­buição parcial de cada um desses inumeráveis cantores e recons­tituir os poemas primitivos — esses poemas que, segundo o conceito predominante na corrente filológica do tempo, um compilador qualquer, talvez chamado Homero, teria simples­mente amalgamado em um todo artificial.

Hoje, vão-se desvanecendo aos poucos as teorias de Wolf; em geral, não por acrisia, mas por nova atitude crítica, refletida e consciente, volta-se a admitir a unidade fundamental dos dois poemas que, vistos à luz de sua inspiração poética e em sua coerência artística e espiritual, não podem resultar da fusão mais ou menos feliz de poemas diversos. Que nos poemas homéricos como em todos os poemas hajam confluído materiais preexistentes, que neles, por exemplo, estejam elaboradas as breves e vetustas canções eólicas que se nos deparam na fase evolutiva inicial da epopéia, a ninguém deverá fazer estranheza; mas este material pressuposto nada tira ao valor criativo daquele que efetivamente compôs quer a Ilíada, quer a Odisséia em sua forma atual. Em obra de arte, fator essencial é a "forma", cunho privativo e insubstituível do gênio. A pesquisa das fontes, se é legítima e até mesmo oportuna, não deve exorbitar da própria esfera.
Igualmente, torna-se a acreditar na existência de Homero considerado não já como simples rapsodo, como cantor apenas de um episódio, como autor do núcleo originário de uma das epopéias ou de ambas, senão como o poeta genial que criou aquele todo unitário. Está hoje em plena decadência o conceito romântico da poesia nascida do povo — conceito de que, ou consciente ou inconscientemente, manava toda a crítica desagre-gadora de Homero. Já não se admite que uma obra de arte possa ser criação colectiva de um povo e possa derivar de outra fonte que não seja uma determinada individualidade artística. Ora esta individualidade se manifesta sem dúvida alguma tanto na Ilíada como na Odisséia. Questão diferente — secundária — é a de saber se é um e o mesmo o autor de ambos os poemas. Nem tão pouco nos assiste direito algum de lhe tirarmos o nome de Homero, que lhe atribui a antigüidade. De sua pessoa, nada . nos refere a história, que em seu tempo não existia; nada nos diz o próprio poeta, todo absorto na contemplação mística que ele reanima ante nossos olhos com objetividade perfeita. Sua existência, em todo caso, não será anterior ao século IX-VIII A.C., É autor da Ilíada, e talvez da Odisséia que, no caso negativo, deverá ser considerada a mais feliz criação da escola fundada pelo sumo poeta, cujos discípulos, os Homéridas, seguindo-lhe as pegadas imortais, urdiram a rede complexa do ciclo épico da lónia antiga.

Tanto a Ilíada como a Odisséia constam de vinte e quatro livros ou cantos. Esta divisão, conquanto não primitiva, talvez seja anterior aos gramáticos alexandrinos, a que se costuma atribuir.

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