20 de abril de 2009

Liderança errática de Bento XVI gera crise na Igreja


Para o vaticanista Marco Politi, papa governa a Igreja Católica de forma "solitária" e inábil; estilo contrasta com sua atuação intelectual. MARCO POLITI, vaticanista do jornal italiano "La Repubblica" e um dos maiores conhecedores da política interna da Igreja Católica, diz que o pontificado de Bento 16 é errático, e que o ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé se comporta de modo "paradoxal" em relação à sua conhecida clareza intelectual. Para o jornalista, tal estilo tem gestado uma "crise subterrânea" entre os católicos desde que Joseph Ratzinger, que completou ontem quatro anos à frente da instituição, foi eleito papa.
"O paradoxo deste pontificado é que Ratzinger, como teólogo e pensador, é muito claro. Mas, como governante, dá passos falsos e depois é sempre obrigado a pedir desculpas, a se justificar e se explicar", afirma o vaticanista.Para Politi, o padrão existe em parte por causa do estilo de "governo solitário" próprio a Bento 16. O papa, ele diz, "não considera as consultas e não presta atenção aos sinais que vêm do exterior". "Ele, na realidade, tende a decidir tudo sozinho." Autor de diversos livros sobre a igreja -o mais recente, publicado na Itália, é "A Igreja do Não" (La Chiesa del No)-, Politi recebeu a Folha em Roma para esta entrevista.

FOLHA - Qual é sua avaliação de Bento 16?
MARCO POLITI - Desde as primeiras intervenções, ele nunca delineou um programa. Insiste no ponto de que é preciso tutelar a integridade da fé. E quer mostrar que o cristianismo é uma fé jovial, não um pacote de regras. Essa é sua convicção profunda, sua linha de pregador, e no entanto sua linha como líder timoneiro, nesses anos, foi a de um constante ziguezague.

FOLHA - Falta união na Cúria?
POLITI - É errado dizer que o papa não consegue governar porque há uma oposição na Cúria [espécie de "ministério" da igreja, formado por cardeais]. A Cúria, por tendência, segue sempre o papa que reina. Mas há uma desorientação dentro da Cúria porque durante o pontificado de Bento 16 houve diversos incidentes que não deveriam ter acontecido. Como, por exemplo, aquele com o mundo islâmico depois do discurso na Universidade de Regensburg [Alemanha], com os lefebvrianos e tantos outros.
FOLHA - Por que o sr. acha que Bento 16 sofre de "solidão"?
POLITI - Bento 16 está sozinho. Não porque exista um partido que trabalhe contra ele. Mas por causa de seu governo solitário, que não considera as consultas e não presta atenção aos sinais que vêm do exterior. O problema é que o papa, na realidade, tende a decidir tudo sozinho. Ele não escuta antecipadamente as sugestões que poderiam evitar a explosão de certos casos.

FOLHA - A decisão de Bento 16 de reabilitar o missal anterior ao Concílio Vaticano 2, que inclui a prece da Sexta-Feira Santa para a conversão dos judeus, provocou críticas do judaísmo. Como o sr. analisa a relação de Bento 16 com os judeus?
POLITI - A questão dos judeus é um exemplo da esquizofrenia que existe neste pontificado. Quero dizer, desde o ponto de vista do governo da igreja, porque, pessoalmente, Bento 16 é muito ligado ao mundo hebraico e à tradição hebraica. Durante a missa de inauguração do seu pontificado, ele falou dos cristãos, dos judeus, mas não falou dos muçulmanos.Porém o seu desejo de encontrar um compromisso com os lefebvrianos fez com que ele, na liturgia pré-conciliar tridentina, admitisse para a Sexta-Feira Santa uma fórmula ambígua que, embora de maneira suave, volta a sublinhar a necessidade da conversão dos judeus.Isso naturalmente provocou mau humor que em seguida explodiu com o caso Williamson. O paradoxo é que ele procurou sempre um compromisso com os lefebvrianos e acabou não conseguindo convencê-los a aceitar o Concílio Vaticano 2.

FOLHA - Bento 16 admitiu falhas na reversão da excomunhão dos lefebvrianos, enviando uma carta aos bispos católicos, na qual reconheceu que existe uma batalha dentro da Igreja "que morde e devora". O senhor acha que há um problema de comunicação dentro da Igreja?
POLITI - O paradoxo deste pontificado é que Ratzinger, como teólogo e pensador, é muito claro. Mas, como governante, dá passos falsos e depois é sempre obrigado a pedir desculpas, a se justificar e se explicar.Foi o que aconteceu com os muçulmanos no discurso em Regensburg. Também aconteceu na viagem ao Brasil, quando afirmou que a evangelização não foi imposta aos índios pelos conquistadores. Igualmente com o caso dos lefebvrianos.A carta que ele escreveu aos bispos do mundo inteiro é um documento da sua sinceridade e também de transparência da sua alma. Ao mesmo tempo é um sinal de fragilidade da sua liderança. Porque quando se diz que na igreja há católicos prontos a atacar o papa, então os casos são dois: ou o pontífice vê cada crítica como um ataque, e isso para um líder é um erro, ou realmente existe abaixo da superfície uma crise profunda da sua liderança.

FOLHA - Bento 16 nomeou o padre Gerhard Maria Wagner como bispo de Linz, na Áustria, e depois recuou. Porque o papa fez essa nomeação?
POLITI - Esse é o caso mais grave, do ponto de vista eclesiástico, da situação problemática da liderança de Bento 16. Porque nos tempos modernos nunca aconteceu que um papa, que para o direito eclesiástico é onipotente, nomeasse um bispo e, depois, a oposição de um episcopado nacional inteiro o obrigasse a cancelar a nomeação.Esse foi o sinal mais grave da crise subterrânea que existe na Igreja Católica.

FOLHA - É possível comparar Bento 16 a Pio 12 que, em 1949, recebeu duras criticas pela excomunhão dos comunistas e outras posições políticas durante a Guerra Fria?
POLITI - Eu não faria esta comparação porque Pio 12, do ponto de vista da liderança, era um papa forte. Ele poderia ser criticado, e foi, mas a máquina do Vaticano funcionava perfeitamente. Enquanto que com Bento 16 temos a impressão de desorientação e estagnação.O papa sente os problemas entre igreja e mundo moderno. Mas é indeciso em fazer escolhas para reformas. Há anos ele tem projetos na gaveta, desde quando era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Um desses era a reforma para a anulação do casamento, deixando mais poder aos bispos ao invés de centralizar todo o procedimento em Roma como instância final.Esses projetos de reforma também poderiam resolver o problema da comunhão negada aos divorciados que se casaram de novo. Mas Bento 16 parece que não tem a coragem de fazer essas reformas.

FOLHA - O sr. pode comentar o caso brasileiro do arcebispo de Olinda e Recife, que excomungou os adultos envolvidos no aborto em uma menina de 9 anos. O Vaticano reagiu tarde demais?
POLITI - É urgente que a igreja tenha uma atitude mais humana, mais misericordiosa com problemas como o divórcio, o aborto, a pesquisa científica. Uma tomada de posição como a do bispo de Recife, que num primeiro momento foi confirmada pelo Vaticano, é absolutamente impensável e vai contra o sentimento comum dos fiéis. Muitas pessoas devotas e apaixonadas pela própria fé se sentem incompreendidas e distantes da igreja hierárquica. Existe um buraco entre igreja hierárquica e fiéis comuns, e essa não é uma questão de direita ou esquerda.

Marco Politi, vaticanista

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