27 de junho de 2009

Concepções escatológicas e vida social no Pentecostalismo Brasileiro

Esta breve reflexão pretende discutir como as formulações teológicas internalizadas pelos fiéis e pregadas pelos sacerdotes lhes dão uma idéia de sentido para a história e influenciam sua participação na política e na sociedade. Para tentar atingir tal intento, analisaremos o desenvolvimento da escatologia, a doutrina das últimas coisas, no pensamento cristão e como ela influenciou e foi influenciada pelas conjunturas sociais. Por fim, analisaremos as concepções escatológicas do pentecostalismo brasileiro, à luz das suas expressões de fé, e suas conseqüências na vida social e política de seus fiéis e lideranças.
Inicialmente, cabe-nos buscar na história algumas referências sobre a influência das diferentes concepções escatológicas na sociedade e na política. Com o crescimento da população evangélica, em especial do segmento pentecostal, e sua inserção na política nacional, parece simplista a afirmação de que o pré-milenismo, a postura de indiferença em relação à sociedade e a manipulação por parte das lideranças eclesiásticas (sem que se discuta os argumentos teológicos usados) são os únicos aspectos do pensar escatológico evangélico.As idas e vindas das concepções escatológicas. Assim como as vertentes dentro do cristianismo são várias, também as são as concepções sobre a doutrina das últimas coisas. Muitas das questões suscitadas por pensamentos teológicos divergentes acabaram em cismas, mortes e até guerras. Tais divergências não podem ser realmente compreendidas olhando-se apenas pela esfera teológica. As diversas interpretações e doutrinas estão repletas da influência das conjunturas políticas, sociais e econômicas nas quais surgiram. As diferentes leituras sobre a o retorno de Cristo podem, num primeiro momento, soar sutis ou insignificantes, mas tiveram conseqüências marcantes na história do cristianismo. Ousamos dizer que, ao tratar da escatologia, entramos na área da teologia cristã que toca de maneira mais profunda a relação do cristão com a sociedade, com a política e, principalmente, com a possibilidade de transformá-las.
Não pretendemos neste pequeno texto tratar de maneira ampla da evolução do pensamento escatológico cristão no decorrer da história. Tendo em vista o nosso objetivo final, que é buscar compreender as concepções escatológicas no pentecostalismo brasileiro e sua influência nas práticas sociais e políticas de seus fiéis, nos concentraremos em algumas das principais divergências e tensões que marcaram os debates sobre a escatologia na história do cristianismo. Tomando emprestadas algumas discussões levantadas por vários autores, dentre os quais destacamos Hans Schwarz (1995), Jürgen Moltmann (2002) e Karl Mannheim (1968), analisaremos as controvérsias escatológicas a partir de três debates: a tensão entre a promessa e o cumprimento; a ideologia e a utopia no pensamento escatológico e a ênfase na pessoa individual ou no aspecto coletivo de seu alcance. Logo após, buscaremos entender o lugar das concepções escatológicas pentecostais dentro desse debate.
Entre o milênio aguardado e o milênio cumprido. O primeiro ponto que gostaríamos de abordar é a tensão existente, na escatologia, entre a promessa e o cumprimento da parousia e entre o “já” e o “ainda não” da concretização das esperanças cristãs na história. Talvez seja esse o primeiro debate escatológico na história do cristianismo e que teve consideráveis conseqüências já nos primeiros passos da igreja cristã. No nascedouro do cristianismo a expectativa pelo retorno iminente de Cristo e o seu reinado junto a seus santos era quase unânime na igreja primitiva. Muito mais do que uma formulação teológica, essa esperança era um consolo para uma comunidade perseguida e minoritária frente a um poderoso império.
Cristo não retornou como esperado e, logo, um novo discurso se fez necessário. De acordo com Schwarz, “na vida posterior da Igreja, de modo gradual e muitas vezes imperceptível, a estrutura bipolar da escatologia – de consumação presente e completamente iminente – foi transformada em uma estrutura na qual o completamento iminente recebeu menos ênfase” (SCHWARZ, 1995, p.504). Porém a idéia da proximidade do fim não foi totalmente esquecida e irrompeu novamente na história do cristianismo em vários momentos. Paralelamente à diminuição do fervor entusiástico em torno do retorno de Cristo, podemos observar uma contínua institucionalização da igreja. E, a partir de Constantino, já passamos a encontrar um discurso escatológico bem diferente, onde se enxerga o reino milenar de Cristo na civilização cristã que crescia e se oficializava. A igreja, “à medida que se tornava cada vez mais estabelecida, não pedia por sua própria dissolução prematura” (SCHWARZ, 1995, p.505). Entra em cena o discurso da necessidade de continuar a evangelização e cristianização do mundo. O reino cristão avançava sem a necessidade do retorno de Cristo.
Vários outros exemplos históricos poderiam nos ajudar a ilustrar melhor, mas, no que tange ao nosso objeto de estudo, podemos tirar algumas observações que nos podem ser úteis. Primeiramente, vemos que a expectativa pelo retorno iminente e pelo reino milenar com Cristo na terra surge em momentos de perseguição, de mudanças e de incertezas. Dos cristãos lançados aos leões em Roma aos grupos que sofrem os impactos do processo de mundialização da economia e mudanças cada vez mais rápidas e radicais de valores morais, passando pelos seguidores dos ensinamentos de Joaquim de Fiori, a parousia, mais do que uma esperança teológica era uma necessidade e uma solução para a insegurança do mundo.
Por outro lado, quanto mais a igreja se institucionaliza, se aproxima do Estado e/ou assume uma posição majoritária em determinada sociedade, ela tende a enxergar o milênio e o progresso rumo ao fim escatológico em sua própria atuação terrena num milênio político-religioso. O cristianismo parece secularizar-se e assumir um aspecto muito mais político. “Somente no reino de Cristo, o espírito cristão abandona a forma de vida eclesial que lhe é própria e obtém a forma de vida política universal” (MOLTMANN, 2004, p.185). Esse tipo de mentalidade pode ser encontrado não apenas no cristianismo pós-Constantino, mas também em outros momentos da história da civilização ocidental. Por exemplo, nos Estados Unidos, a mentalidade do Manifest Destiny e toda a concepção de nação eleita e portadora de um modelo de sociedade under God que deve ser expandida por todo o mundo nos remete imediatamente a uma concepção de milênio em curso.
Resumindo, vemos que as concepções escatológicas sobre o retorno de Cristo e seu reinado milenar estão estreitamente ligadas a questões políticas e sociais. A distância do grupo em relação ao centro do poder político parece definir, em boa parte, sua concepção quanto ao retorno de Cristo. Os perseguidos, discriminados e alijados do jogo do poder, além de grupos em sociedades e épocas onde haja contestação de valores morais e incertezas quanto à segurança futura, tendem a aguardar ansiosamente pela segunda vinda de Cristo como um remédio para uma civilização decadente que persegue os fiéis e despreza os valores religiosos. Por outro lado, a igreja “vitoriosa”, majoritária, bem próxima ao poder e influente na esfera política vê em sua própria atuação o reino milenar em progresso. Não há necessidade de um retorno de Cristo em glória. Ele já está sendo glorificado pela atuação da cristandade no mundo através da igreja e dos líderes políticos cristãos. Movimentos milenaristas, dentro dessa lógica, se colocam contra o milênio da igreja e contestam seus valores. Por isso, normalmente são perseguidos.
Entre a ideologia e a utopia. Nesta parte, tomamos emprestadas algumas observações e concepções apresentadas por Karl Mannheim (1968) em seu livro Ideologia e Utopia que, cremos, nos darão boas indicações para compreender o impacto das concepções escatológicas na vida social e vice-versa. Para esse autor, tanto a ideologia quanto a utopia partem de idéias que transcendem o contexto social em que se encontram e apontam para uma nova forma de sociedade. Porém, enquanto as ideologias “jamais conseguem de facto a realização de seus conteúdos pretendidos” pois “seus significados, quando incorporados efetivamente à prática são, na maior parte dos casos, deformados”, as utopias “conseguem, através da contra-atividade, transformar a realidade histórica existente em outra realidade, mais de acordo com suas próprias concepções” (MANNHEIM, 1968, p.218-219).
Em confronto com a ordem vigente, a utopia, necessariamente, precisa romper com essa ordem para instalar uma nova. A ideologia, por outro lado, parece abrir uma espécie de “diálogo” e acaba por incorporar vários valores do status quo diferenciando-se das utopias ao se tornarem aceitáveis e adequadas à visão de mundo reinante. “Os representantes de uma ordem dada irão rotular de utópicas todas as concepções de existência que do seu ponto de vista jamais poderão, por princípio, se realizar” (MANNHEIM, 1968, p.220). Voltando a nosso exemplo anterior, a igreja “vitoriosa” e vinculada ao Estado não poderia permitir a existência de grupos no interior do cristianismo que fizessem apologia a uma subversão da ordem estabelecida da qual ela era um dos pilares.
Entre as principais formas de mentalidade utópica, Mannheim coloca a união entre o pensamento milenarista e as demandas das classes oprimidas. Dentro do pensamento escatológico cristão, por diversas vezes, encontramos um embate entre uma concepção escatológica de cunho providencialista, que tende a fazer coincidir a realidade histórica com os desígnios divinos levando a uma certa anuência com a situação social, e uma escatologia de perfil profético-milenarista de cunho mais popular e abraçado pelos grupos oprimidos pela ordem vigente. O que nos interessa mais diretamente nesse debate é, novamente, a relação que as concepções escatológicas estabelecem historicamente com as circunstâncias sociais nas quais estão inseridas. A visão do sentido da história e da razão das circunstâncias do presente coloca em posições opostas os diferentes grupos cristãos e até dentro do próprio grupo devido à sua colocação no quadro social e político. O discurso escatológico acaba por se moldar aos interesses e conceitos do grupo que o proclama.
Qual o alcance da escatologia: Individual ou coletivo? O último aspecto da evolução do pensamento escatológico que pretendemos tratar é a questão do alcance individual ou coletivo da escatologia. Deixamos claro que esse aspecto gira em torno da ênfase do discurso escatológico. Não podemos falar em algum tipo de pensamento escatológico que não tenha vestígio desses dois tipos de abordagem simultaneamente. Mas a ênfase em algum desses dois pólos pode levar a concepções escatológicas bem peculiares.
De acordo com Schwarz (1995), são duas as principais tendências escatológicas que enfatizam a dimensão individual da escatologia. A primeira, cuja influência no Brasil é muito restrita, atingindo, principalmente, os debates teológicos acadêmicos, é uma escatologia de cunho existencialista representada, entre outros, pelo renomado teólogo protestante Rudolph Bultmann. Essa abordagem busca demonstrar que a escatologia neotestamentária, principalmente nos escritos do Paulo e de João “deveria ser interpretada com categorias existenciais” (SCHWARZ, 1995, p.519). A escatologia deve estar aberta à possibilidade de se voltar para o presente, para o momento da decisão individual e não apenas voltada para os últimos dias.
A outra abordagem focalizada no indivíduo, que realmente interessa a nosso objeto de estudo, caracteriza-se por uma interpretação literalista do livro sagrado e por uma visão espiritualizada do mundo e das estruturas de poder. A história seria apenas um cumprimento das profecias bíblicas. Podemos dizer que o início desse tipo de abordagem surgiu na Inglaterra do século XVII e, segundo Moltmann, caracterizava-se como “um apocalipsismo fundamentalista e anti-modernista” (MOLTMANN, 2004, p.177). Esse tipo de análise ganhou força, principalmente, na segunda metade do século XX. Cremos que o surgimento do Estado de Israel, considerado como cumprimento de profecias bíblicas e a Guerra Fria, com a ameaça de uma catástrofe nuclear, fortaleceram esse tipo de abordagem, principalmente no fundamentalismo norte-americano.
Sobre a perspectiva pré-milenista e sobre as concepções escatológicas do fundamentalismo trataremos mais adiante. O que nos interessa agora é como esse tipo de abordagem enfatiza uma face individualizada da escatologia. Em Hal Lindsey (1976) e outros autores ligados a essa corrente, temos um mundo degradado e sem esperanças onde as forças espirituais malignas têm o controle do poder político e do poder religioso. O anúncio da iminência do fim dos tempos e a falta de esperança em algum progresso do mundo acabam por levar o cristão a se isolar e “parece faltar qualquer responsabilidade ou engajamento social além da esfera privada”. Nesta perspectiva, “o Estado e o governo (...) são percebidos apenas como a besta apocalíptica (...) Dessa forma, uma retirada para a esfera privada é acoplada a uma escatologia supramundana que não transforma nosso mundo, mas o destrói” (Schwarz, 1995, p.524). Se o mundo satanizado está fadado à destruição e a redenção se dará além da história, por uma intervenção direta divina, a salvação se torna tão somente individual.
Quando, porém, as ênfases se colocam nas dimensões coletivas, a escatologia apresenta uma nova roupagem e uma nova postura para com a sociedade. Esse tipo de abordagem caracteriza-se por um grande interesse pelos problemas contemporâneos. “As estruturas sociais ganham, assim, a atenção primária nessa tentativa de relacionar a mensagem bíblica com as questões da atualidade” (SCHWARZ, 1995, p.525). A questão da esperança escatológica e as implicações intramundanas dessa esperança são marcas dessa linha, principalmente em Jürgen Moltmann (2004). Outros referenciais desse tipo de abordagem são os autores da chamada Teologia da Libertação e da Teologia Negra.
As conseqüências da escatologia de ênfase individualizada podem ser bem retratadas dessa maneira: “Preocupa-se com a salvação da alma. Por isso a questão da transformação do mundo sempre lhe pareceu um desvio perigoso. A sua ética é individual e não social. Ela indica as marcas do comportamento do crente, adequado à sua condição de salvo” (ALVES, 2005, 257). Aliada a uma crença de que as profecias bíblicas sobre o final dos tempos estão se cumprindo no presente, tal concepção cria uma fé e uma visão da sociedade espiritualizada e maniqueísta levando o fiel ao escapismo.
De que pentecostais estamos falando? Ao se escrever sobre os evangélicos no Brasil, qualquer estudioso do assunto tem que assumir a ingrata tarefa de tentar buscar alguma referência sobre o que é, de fato, seu objeto de pesquisa. A diversidade de crenças e concepções teológicas marca o cristianismo brasileiro, especialmente no seu veio não-católico. Por isso, pretendemos definir nosso objeto de estudo a partir de algumas crenças gerais que lhes são peculiares e extrapolam os limites denominacionais. Para o observador do campo religioso brasileiro, principalmente de tradição protestante, fica evidente que os dados do censo não demonstram, por sua limitação de pesquisa quantitativa, a verdadeira dimensão do crescimento do pentecostalismo. Esse movimento não está restrito às denominações confessadamente pentecostais e neo-pentecostais. Suas concepções já são aceitas por grande parte, para não dizer a maioria, dos membros de outras igrejas, principalmente nas chamadas protestantes históricas.
Portanto, mesmo correndo o risco da generalização excessiva, tentaremos falar de um pentecostalismo que tem as seguintes características: Crê na contemporaneidade dos chamados “dons do espírito”, entre os quais a glossolalia e as curas divinas; apresentam marcas profundas do impacto das igrejas da “terceira onda pentecostal”, de acordo com a definição de Paul Freston (1994b) ou igrejas de religiosidade pós-moderna de acordo com Mendonça (2006); faz uma leitura literalista e fundamentalista dos escritos sagrados; e aceitam com naturalidade a inserção de suas igrejas na política eleitoral, inclusive com seus candidatos oficiais.
Sabemos que essa delimitação pode ser um tanto quanto arriscada, pois, por exemplo, deixa uma das maiores igrejas pentecostais do Brasil fora de seu alcance, a saber, a Congregação Cristã do Brasil, que, até hoje se mantém afastada da política eleitoral e dos meios de comunicação de massa. Todavia, cremos que essa delimitação feita acima engloba, não só a grande maioria dos pentecostais brasileiros, mas, ousamos afirmar, a maioria dos evangélicos do Brasil.
Qual o lugar das concepções pentecostais na história escatológica? No protestantismo brasileiro de origem missionária, a perspectiva escatológica preponderante foi, sem sombra de dúvida, a pré-milenista, a crença de que o reino milenar do Messias não se daria na história, “ao contrário, dada a decadência progressiva da humanidade, Cristo viria encerrar a história e reinar por mil anos (...) Todo o conservadorismo protestante e, particularmente, todos os fundamentalistas proclamam o pré-milenismo” (MENDONÇA, 2004, p. 70). Essa linha escatológica apresenta uma grande ênfase no fim do mundo, gerando, por parte de seus seguidores, uma atitude de relativização com relação aos bens terrenos e uma aparente apatia no que tange à atuação na sociedade e na participação política.
Porém, de acordo com Paul Freston (1994a), a partir das eleições de 1986 esse quadro começou a se alterar com uma nova postura adotada por algumas igrejas, entre as quais citamos a Assembléia de Deus, no sentido de eleger parlamentares ligados à sua denominação. Interessamo-nos em observar tal fenômeno não do ponto de vista meramente eleitoral ou do crescimento da participação de políticos evangélicos nas casas legislativas brasileiras, mas pelo viés do discurso teológico, mais precisamente escatológico, que busca legitimar essa mudança de postura dos pentecostais frente à política nacional. Parece claro que os interesses institucionais das igrejas e outras mudanças sociais têm papel fundamental nesse novo quadro, porém, a questão do discurso escatológico legitimador de tal mudança não pode ser ignorada.
A doutrina pré-milenista é, praticamente, a mesma da chegada dos missionários norte-americanos, mas o que explicaria uma mudança do apoliticismo radical para o engajamento eleitoral? Trabalha-se muito com a idéia de uma manipulação religiosa das lideranças eclesiásticas sobre os fiéis, criando “currais eleitorais” dentro das igrejas. Mas, mesmo pensando dessa forma, faz-se necessário analisarmos qual o discurso de fundo teológico que legitima tal atuação pelos fiéis e os convoca ao engajamento. Em termos teológicos de confissão de fé e doutrinação religiosa, o pré-milenismo ainda permanece como a explicação oficial sobre os acontecimentos dos últimos dias. Porém, sob a influência do fundamentalismo religioso, principalmente o de origem protestante norte-americana, de alguns aspectos da cultura brasileira e do “sucesso” das doutrinas e da fé “de resultados” dos grupos neo-pentecostais, a crença pré-milenista não tem apresentado mais as conseqüências esperadas de maneira uniforme. Cremos que uma compreensão sobre as concepções escatológicas dos grupos pentecostais e suas conseqüências na vida social e em sua participação na política brasileira passa pelos seguintes pontos:
1) Ao que parece, a ansiedade pelo retorno iminente de Cristo para livrá-los da incompreensão da sociedade secularizada, dos preconceitos religiosos dos quais são alvos, do caos social e da possibilidade de uma Terceira Guerra Mundial de proporções catastróficas começa a perder lugar no discurso e na fé vivenciada. Tal mudança ainda pode ser considerada lenta e, às vezes, até imperceptível, mas, na nossa opinião, encontra-se em curso. Entra em cena e influencia quase que a totalidade da religiosidade cristã brasileira, ultrapassando, inclusive, as barreiras do pentecostalismo, as religiosidades que Antônio Gouvêa de Mendonça chama de pós-modernas que “pregam e agem fora de sistemas de verdades eternas e firmam-se na pura contingência das necessidades imediatas (MENDONÇA, 2006, p.91). Somando-se a isto o progressivo sucesso no desempenho eleitoral, o crescimento do número de evangélicos atestado pelos últimos censos e um discurso triunfalista da possibilidade de uma nação evangélica, onde se ouve recorrentemente a necessidade de “ganhar o Brasil para Jesus” e transformá-lo em uma “nação feliz que tem Deus por Senhor”, podemos pensar em um novo direcionamento no pensamento escatológico. Será que o pentecostalismo brasileiro não estaria experimentando, embora muito lentamente, uma mudança na ênfase do retorno imediato para uma ênfase no milênio da igreja? Passado um século de sua chegada ao Brasil o momento milenarista e “demonizador” do campo secular não estaria sendo substituído por uma luta pela hegemonia no campo religioso com conseqüências no terreno da política? Por enquanto ainda é difícil estabelecer parâmetros de comparação mais precisos com outros movimentos históricos, mas o novo discurso parece ter uma vinculação com o fundamentalismo norte-americano de origem protestante.
2) Dentro do fundamentalismo norte-americano, encontramos um movimento semelhante que teve início, aproximadamente, dez anos antes da ofensiva dos evangélicos na política eleitoral. Segundo Oro, “na escalada dos anos 75-80, o fundamentalismo faz a passagem do protesto sócio-cultural para o engajamento político. Líderes e fiéis fundamentalistas passam a dar sustentação às campanhas contra o aborto, a difusão dos contraceptivos (...)” (ORO, 1996, p. 97). Muito do discurso das lideranças evangélicas brasileiras parecem ecoar argumentos de grupos como a Moral Majority norte-americana. Não sabemos ainda qual o nível de similaridade os movimentos vão continuar apresentando. Outro ponto interessante a ser analisado, que constitui uma aparente diferença entre os dois movimentos, é a questão da mobilização civil em torno das lutas e protestos pelos valores morais que defendem. Diferentemente dos Estados Unidos, onde uma cultura de participação civil e associacionismo voluntário ainda matem certa força, no Brasil a mentalidade de delegar aos representantes eleitos esse papel parece ser a tônica. Poucos são os movimentos e protestos populares em torno de causas morais e sociais por parte dos evangélicos brasileiros. Sua atuação ainda é muito limitada à esfera religiosa somente. A falta dessa cultura participativa e consciência limitada de cidadania do brasileiro podem ser algumas das razões.
3) O discurso pentecostal e sua intervenção no universo social e político brasileiro parecem bem distantes da concepção de utopia de Mannheim, aproximando-se mais da sua idéia de ideologia. A possibilidade da “nação evangélica” não traz em seu bojo nenhum discurso de transformações profundas da sociedade. Segundo o próprio Mannheim, “uma pessoa pode-se orientar para objetos que sejam estranhos à realidade e que transcendam a existência real – e, não obstante, permanecer ainda ao nível da realização e na manutenção da ordem de coisas existentes” (MANNHEIM, 1968, p. 216). Ao abordar o ethos do pentecostalismo vemos seu ponto de contato mais visceral tanto com o protestantismo quanto com a tradição pré-milenista. Ainda permanece uma consciência de que é necessária a conversão do indivíduo para uma transformação da sociedade. Ainda ecoa o pensamento que Rubem Alves (2005) retratou: “se todos fossem crentes como eu o Brasil seria um país abençoado e próspero”. Nesse sentido, a citação a seguir de Mendonça nos mostra claramente ainda as permanências que vemos nas concepções escatológicas pentecostais, as quais não nos permitem falar de uma ruptura completa com seu pré-milenismo inicial: “Ao se estudar a inserção dos pentecostalismos na política não se pode deixar de levar em conta esse espírito, o espírito de pequenas comunidades voltadas para o interior de si mesmas condenando o mundo enquanto aguardam o milênio” (MENDONÇA, 2006, p. 108). Dessa forma, dentro do tema como o tratamos anteriormente, a ênfase da escatologia pentecostal ainda é, preponderantemente, individualista e a dimensão coletiva e transformadora da sociedade só é vista através da possibilidade da soma das conversões individuais.
4) O último ponto que gostaríamos de tratar é o da espiritualização da política e da vida social. A disseminação do conceito de “Batalha Espiritual” e sua aplicabilidade nas estruturas de poder e nos conflitos sociais que se fortaleceu no Brasil a partir dos anos 80, de maneira quase simultânea à mudança de postura dos evangélicos em relação à política eleitoral, estão muito presentes no discurso pentecostal atual. Grande parte dos best-sellers da literatura evangélica trata desse tema. Atualmente é um tema muito mais em voga do que o Apocalipse. Os anjos e demônios passam a atuar nas estruturas profanas do governo e da sociedade civil. Principados e potestades demoníacas influenciam os rumos da política nacional: daí a causa das injustiças, da pobreza e da decadência moral. Cabe ao crente lutar pela causa da Fé nesse terreno. E essa luta não mais se limita a jejuns e orações. A presença de “homens de Deus” no território do inimigo mostra o avanço do “povo de Deus”. A luta escatológica final parece ter sido trazida para o presente. Se no pré-milenismo clássico a consciência da iniqüidade do mundo levava ao isolacionismo, na escatologia presente da Batalha Espiritual, a consciência do mal na sociedade e na política leva ao engajamento. O objetivo seria “marcar posição” ou vencer o inimigo? Muitos podem considerar desta forma: marcar posição agora e derrotar o inimigo no além da história. Mas, fica aqui o questionamento: Será que o supracitado discurso triunfalista e a possibilidade de “ganhar o Brasil para Jesus” não parecem supor uma possibilidade de vitória dentro da história?
Considerações finais. Ao chegar ao final deste trabalho esperamos ter aberto para o leitor uma nova possibilidade de se compreender a participação do evangélico-pentecostal na sociedade brasileira. A reflexão sobre a experiência histórica do cristianismo no decorrer dos séculos nos mostra como as concepções escatológicas desempenharam um papel importantíssimo na auto-compreensão que os diversos grupos cristãos tinham de seu papel social. Procuramos fugir de análises unilaterais e deterministas. Não se pode compreender a construção da teologia apenas como uma questão de fé, imune às conjunturas sociais e políticas, mas também não podemos ignorar o poder que os conceitos de fé, internalizados pelo indivíduo ou pelo grupo, têm de criar uma forma sui generis de participação social e política.
No caso do estudo da participação dos grupos pentecostais na sociedade e política brasileira, tentamos fugir do perigo de uma análise determinista e, de certa forma, desatualizada de suas concepções escatológicas. Será que, fugindo de conceitos teológicos fechados, a experiência e as transformações do pentecostalismo brasileiro não o encaminham para uma nova forma de pensar e viver a escatologia? A nosso ver, principalmente após sua inserção na política nacional, parece simplista a afirmação de que o pré-milenismo, a postura de indiferença em relação à sociedade e a manipulação por parte das lideranças eclesiásticas (sem que se discuta os fundamentos teológicos usados, sejam eles coerentes ou não) consigam abarcar todas as complexidades do pensar escatológico evangélico e pentecostal. Cremos que o estudo das concepções escatológicas dos diferentes grupos cristãos que compõem o riquíssimo leque religioso do Brasil pode nos abrir as portas de uma melhor compreensão das suas peculiaridades e de seu modo de perceber o mundo, a sociedade e a história.
Daniel Rocha, historiador - mestrando em Ciências da Religião pela PUC-MG
REFERÊNCIAS
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FRESTON, Paul. Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio ético. Curitiba: Ed. Encontrão, 1994a.
FRESTON, Paul. Breve História do Pentecostalismo Brasileiro. In: ANTONIAZZI, Alberto, et al. Nem anjos nem demônios. Petrópolis: Vozes, 1994b.
LINDSEY, Hal. A agonia do grande planeta terra. São Paulo: Mundo Cristão, 1976.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
MENDONÇA, Antônio Gouvêa. Protestantismo brasileiro, uma breve interpretação histórica. In: SOUZA, Beatriz Muniz de; MARTINO, Luís Mauro Sá (Orgs.). Sociologia da Religião e Mudança Social: Católicos, protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. São Paulo: Paulus, 2004.
MENDONÇA, Antônio Gouvêa. Evangélicos e pentecostais: Um campo religioso em ebulição. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Orgs.). As religiões no Brasil: Continuidades e Rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006.
MOLTMANN, Jürgen. A Vinda de Deus: Escatologia Cristã. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002.
ORO, Ivo Pedro. O Outro é o Demônio: Uma análise sociológica do fundamentalismo. São Paulo: Paulus, 1996.
SCHWARZ, Hans. Escatologia Cristã. In: BRAATEN, Carl E., JENSON, Robert W. Dogmática Cristã. São Leopoldo: Sinodal, 1995.

Um comentário:

Daniel disse...

Só Faltou a fonte!