5 de outubro de 2009

O inferno existe?

Há, de fato, pelo menos três fortes argumentos contrários à idéia popular de inferno. O primeiro consiste na impossibilidade de identificar, ao longo de uma história de vida, “quando”, de fato, alguém disse um “não” plenamente consciente, livre e total a Deus. Hoje sabemos que nossas opções são condicionadas por várias circunstâncias e fatores, alguns deles até mesmo inconscientes.
O teólogo católico Karl Rahner explica isso bem quando esclarece que a concupiscência não é, como se pensava, uma inclinação ao pecado e às coisas que Deus teria proibido. Ela consiste na dificuldade de nossa liberdade para concretizar qualquer desejo ou projeto, tanto para o bem quanto para o mal. Por causa da concupiscência, fruto da limitação humana, não conseguimos ser nem cem por cento bons, nem totalmente maus.
O segundo argumento, de sabor paulino, diz respeito à vitória da graça redentora de Cristo. Segundo Paulo, quando estávamos na mais torpe condição a que pode chegar um ser humano, Deus veio em nosso socorro (Rm 5,6-10). Portanto, nunca, por mais pecados que a humanidade possa cometer, estaremos em uma situação pior do que aquela em que Deus nos achou ao decidir redimir-nos. Que podemos temer, então?
O terceiro argumento apela para a pretensa felicidade eterna dos que entrarem na glória. A fé cristã garante que será salvo quem aprender a amar nesta terra; pois amar é experimentar já aqui a graça de Deus, e a graça já é o “começo da glória”. Ora, quem ama se compadece do sofrimento dos irmãos. Como, então, poderia alguém, que passou a vida se preocupando pelo bem do próximo, ser eternamente feliz no céu sabendo que muitos de sua gente estarão eternamente infelizes sob as penas do inferno? Por acaso o céu eterno tornará tais pessoas insensíveis e indiferentes à dor alheia?
A favor da necessidade de uma condenação eterna — o famigerado inferno — colocam-se, em vez disso, dois argumentos, igualmente poderosos. O primeiro insiste no fato de que as pessoas vão tecendo, livremente, ao longo da vida, algumas opções fundamentais, as quais estarão de tal modo entranhadas em seu íntimo que será difícil desvencilhar-se delas na hora H. A condenação ou a bem-aventurança eternas apenas ratificarão o que realmente fomos durante nossa vida. O segundo argumento, que complementa o primeiro, apela para a absoluta seriedade da liberdade, que pode ferir gravemente o próximo e ofender terrivelmente a Deus. Se, no final, Deus acabar concedendo uma anistia ampla, geral e irrestrita a todos, isso significaria que a história humana inteira, com seus tremendos sofrimentos, tragédias e injustiças, terá sido apenas um mero passatempo de Deus às nossas custas. Teremos sido nada mais que marionetes em suas divinas mãos.
Como sair desse impasse sem ofender a genuína revelação cristã de Deus? Primeiro, é preciso admitir a devida dose de razão aos argumentos pró e contra a eterna condenação. Entretanto, temos de ter cautela para não confundir teologia com biologia, física, geografia ou futurologia. A teologia trabalha a partir de certezas de fé, e estas foram plasmadas em determinados contextos antropológico-culturais a fim de propor um valor ou sentido último à existência humana.
O cristianismo prega um sentido (um porquê) para nossa existência nesta terra que não pode estar em contradição com as figuras e os símbolos utilizados para explicar tal mensagem. Qualquer imagem que passe a idéia do inferno como castigo ou vingança de Deus deve ser jogada fora.
O inferno é uma “tragédia” para Deus. Ele nos criou livres por amor e jamais eliminará nossa liberdade. Sendo assim, respeitará nossa livre decisão contra ou a favor dele. O inferno seria, então, fruto da obstinação de alguém contra Deus. Será “eterno” se alguém conseguir manter-se para sempre na oposição ao Reinado de Deus (será que alguém conseguirá resistir tanto assim ao amor divino?).
Em suma, cristão é aquele que deseja, ardentemente, que ninguém obtenha sucesso em tal “façanha”. Por isso outro teólogo católico, Hans Urs von Balthasar (um dos teólogos prediletos de João Paulo II), dizia, numa frase bem-humorada: “Eu creio no inferno; mas acredito que ele esteja vazio”.
Finalmente, quero recuperar o argumento da seriedade de nossas opções livres. Com certeza, Deus as leva a sério e sofre com e por elas. Mas, ele também sabe de que barro somos feitos; pois foi ele quem nos criou. Ele sabe que está em nós o dispositivo (providencial) da concupiscência, que, se de um lado nos impede de sermos perfeitos como Deus, também nos impede de sermos totalmente maus. Assim, haverá sempre um quê de bondade a ser resgatado do âmago de todo ser humano; pois, como diz o teólogo Juan Luis Segundo, “o que há de vida divina no ser humano é indestrutível, irreversível, fiel”.
E o que vai para o inferno, afinal? Nas palavras de Andrés Torres Queiruga, o inferno é “a ‘condenação’ do mal que há em cada um de nós”. A ele se destinará tudo aquilo que não for fruto do amor e não resistir ao “fogo” do juízo. Porém, como dizia o apóstolo Paulo, o ser humano “pessoalmente se salvará, mas como alguém que escapa do fogo” (1Cor 3,15), a fim de que seja incorporado à nova terra e ao novo céu mesmo o último ou o mais pecador dos seres humanos.
Uma última observação. Tenho consciência de que este tema é muito complexo para ser tratado em tão pouco espaço. Por isso deixo três dicas de leitura para quem quiser aprofundar-se depois. A simples: de C. Bazarra, A esperança não engana (Paulinas); a menos fácil: de A. Torres Queiruga, O que queremos dizer quando dizemos “inferno”? (Paulus); e a mais difícil: de J. L. Segundo, O inferno como absoluto menos (Paulinas).
Autor: Prof. Dr. Afonso M L Soares, teólogo PUC-SP
Fonte: Revista Ciber Teologia

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