14 de julho de 2010

Para entender a descontrução

Clássico da filosofia contemporânea, “A Escritura e a Diferença”, de Jacques Derrida, tem primeira tradução integral depois de quase 40 anos1 967 foi um ano especialmente prolífico para Jacques Derrida, um dos maiores nomes da filosofia recente, que faria 80 anos em julho próximo (ele morreu em 2004). Naquele ano, o pensador francês nascido na Argélia publicou dois de seus principais livros: A Escritura e a Diferença, reunião de artigos, e Gramatologia, uma sistematização de seu pensamento.

A afinidade entre os dois títulos é tão grande que Derrida certa vez declarou que o primeiro livro poderia ser inserido simbolicamente no meio do segundo ou, de forma inversa, Gramatologia poderia estar entre o sexto e o sétimo artigo de A Escritura e a Diferença.

À parte o estilo elíptico do filósofo, o leitor brasileiro teria razões para ficar perdido nas contas. Afinal, desde a primeira edição brasileira, em 1971, A Escritura e a Diferença tinha três textos a menos do que a versão em francês. Eram ausências significativas, como o longo ensaio sobre Emmanuel Lévinas (filósofo francês nascido na Lituânia, de quem Derrida era grande leitor), um artigo sobre a História da Loucura de Foucault e ainda outro sobre Bataille e Hegel.

Agora não mais: no final do ano passado, A Escritura e a Diferença ganhou sua primeira versão na íntegra em português pela mesma editora Perspectiva que publicou o livro pela primeira vez, há quase 40 anos.

Derrida é provavelmente menos conhecido do que o termo que difundiu, a “desconstrução”, palavra que entrou na linguagem do dia-a-dia como sinônimo de destruir ou desmontar – como quando se diz que alguém “desconstruiu” o argumento de outra pessoa. São vicissitudes da língua, que é um fenômeno vivo, mas esse uso já está distante do pensamento do filósofo. A ânsia de entender o que é a desconstrução para Derrida motivou episódios constrangedores. Uma das raras vezes em que o bem-falante filósofo perdeu a elegância foi quando uma apresentadora da TV australiana propôs uma comparação entre a desconstrução e o seriado americano Seinfeld. Derrida respondeu contrariado: “A desconstrução, da forma como a entendo, não produz qualquer sitcom”. E finalizou com uma indireta à entrevistadora, sugerindo que “as pessoas” façam sua lição de casa.

Ninguém ousaria dizer que é leitura fácil, mas sua dicção não traz mais dificuldade do que a de filósofos da tradição, como Heidegger, Hegel ou Kant, para ficar nos alemães. A Escritura e a Diferença é um bom começo. Em um célebre artigo sobre Lévi-Strauss, registro de uma conferência feita na Universidade Johns Hopkins (EUA), Derrida identifica um ponto cego no procedimento do antropologo, notando que ele falha ao tentar classificar a proibição do incesto como um fenômeno apenas natural ou apenas cultural. Estaria nas duas categorias ao mesmo tempo.

Derrida pretende denunciar que a história do pensamento funcionou por meio de oposições de conceitos em que um dos lados é sempre privilegiado: “natureza” em detrimento de “cultura”, “razão” em relação a “emoção”, “masculino” sobre “feminino” e assim por diante. É um paradigma que revela, segundo ele, uma fixação pelas ideias de origem, identidade, essência, presença, totalidade. Para Derrida, não há nada de natural nisso. O processo de leitura da desconstrução – palavra que ele usava moderadamente – procura mostrar que toda tentativa de estabelecer uma leitura fechada desse tipo falha em sua missão. Ou seja, a exceção não confirma a regra; ao contrário, prova que a regra tem sempre uma falha originária.

O que nem sempre é lembrado, mas é parte indissociável do pensamento de Derrida, é seu potencial crítico-político. A desconstrução inspirou, por exemplo, vertentes do feminismo acadêmico. Uma teórica chegou a afirmar que se trata do primeiro filósofo homem (além de John Stuart Mill, ela ressalva) que realmente pensa a questão da mulher.

Assim como outros representantes do pensamento produzido na França na segunda metade do século 20, a exemplo de Foucault e Deleuze, Derrida enfrentou resistência de outros segmentos da filosofia, especialmente aqueles identificados com o humanismo, que trabalha com a ideia de uma essência do homem – uma visão de mundo que, Heidegger lembra, pode ser encontrada do cristianismo ao marxismo. Daí o motivo pelo qual não faria sentido, nessa perspectiva, um ateísmo humanista, pois ambas as ideias – Deus e essência – estão no campo do logos, da razão. A morte de Deus teria de vir necessariamente com o fim do humanismo. Mas Derrida era cético sobre esse tipo de assertiva. Certa vez declarou que não crê “na morte do que seja: o livro, o homem ou deus; tanto mais que, como todos sabem, o morto carrega uma eficácia bastante específica”.

A nova edição confirma que A Escritura e a Diferença conserva seu vigor. O texto é intenso, ligeiramente diferente de trabalhos da fase posterior, em que Derrida tratou de temas como justiça, solidariedade e hospitalidade. Tudo isso torna a releitura ainda mais necessária. E o livro volta aos leitores brasileiros ironicamente na íntegra, sem falhas originárias.

fabio.pri@zerohora.com.br

Colaboração:Rodney Eloy

Nenhum comentário: