21 de janeiro de 2011

Kant e a aguardente


Um dos grandes filósofos da era moderna, o alemão Immanuel Kant (1724-1804) transformou o pensamento ocidental sem jamais transpor as redondezas de sua cidade, Königsberg. O sedentarismo ajudou a fixar a imagem de Kant como um gênio intelectual de vida pessoal quase inexistente, inventor de um excêntrico dispositivo mecânico para impedir que suas meias caíssem e mais pontual em seus passeios diários do que as badaladas da igreja.

A caricatura do cérebro sem traquejo social parece ajustar-se bem à obra do filósofo que fez da razão humana o centro de seus escritos. Em contraste com esse retrato, no entanto, relatos de colegas, alunos e amigos registram o talento de Kant para a conversa e seu sucesso nas reuniões de sociedade em Königsberg, que lhe valeram quando jovem o epíteto de “o professor galante”.

Em seus livros mais conhecidos, sugestões desse Kant mundano e bem-humorado aparecem muito brevemente, por exemplo numa anedota na “Crítica da Faculdade do Juízo” (1790) sobre um chefe iroquês que tinha as tabernas como parte preferida de Paris. Mas outros escritos mostram que o filósofo tomou a vida mais corriqueira como objeto de pensamento. Nesta edição, o Prosa & Verso publica pela primeira vez em português trechos das “Reflexões de antropologia” de Kant, uma série de anotações sobre assuntos diversos (amizade, velhice, mulheres, bebidas alcoólicas...) traduzidas em parceria pelos professores Daniel Omar Perez (PUC-PR) e Valerio Rohden (UFRGS). Tradutor das principais obras de Kant, Rohden morreu em setembro do ano passado. Desde então, Perez continua trabalhando na tradução dos textos, ainda sem previsão de edição em português e até hoje publicados apenas em alemão. Às vezes feitos às pressas, de modo críptico e com pontuação truncada, esses rascunhos ainda assim oferecem uma amostra reveladora do olhar de Kant sobre as peculiaridades da vida humana.


Abaixo, alguns trechos das anotações.

 
SOBRE AS MULHERES
Uma mulher tem de ser entre todos a menos dispersa, tampouco ser embriagada, e elas, de fato, habitualmente também não o são. Observam tudo.


Como a mulher engana os sentidos e nós gostamos de deixar enganar-nos.


Homens podem ser dirigidos do melhor modo pela sua fantasia. A mulher dirige o marido , deixando a ele a fantasia do domínio: o príncipe dirige pela fantasia da liberdade.




SOBRE A AMIZADE


Há amigos que nem sempre se suportam, [mas] e inimigos que não podem deixar-se.




PRAZER


Porque prazer é totalmente algo absoluto (interno) e não se refere a nenhum objeto, a respectiva sensação é sempre verdadeira.




O DUPLO EU

Duplo eu. Enquanto sou passivo ou ativo, animal ou humano. Por isso governo a mim mesmo, censuro e polemizo comigo mesmo.





SOBRE A BEBIDA


Embriaguês, esperança e sono, mediante os quais os homens armam a si mesmos contra os males. (Por que principalmente povos nórdicos gostam tanto de embriagar-se?)
(Aguardente é uma bebida clandestina. (Embriagar-se solitariamente parece mal -— aguardente.) Opium. Beber em excesso torna bruto e selvagem, suprime a sociabilidade. Observadores astutos não bebem.) (Vivificação da sociabilidade.)
Judeus não se embriagam devido a sua relação civil, mulheres não, devido a seu sexo e religiosos não, devido a sua classe. Em todos os casos eles necessitam cautela. Pessoas sociais* embriagam-se: meio para a jovialidade (não só. Não aguardente). Suprimir cuidados; uma pessoa sóbria é inoportuna (loquaz). Catão (virtusincaluit mero.) Os alemães concebiam seus conselhos durante a bebida. O que se expressa é uma diversidade de temperamentos, não de caráter. Trata-se de um novo fluidum no sangue. (Se a abstenção da bebida em sociedade é suspeita?)
Embriaguez dos selvagens (dos turcos macassários por opium. Bang.)
(Não convém a jovens embriagar-se.)
Entre os asiáticos a bebida debilita o entendimento e aumenta os impulsos, entre os europeus o último não <é o caso>.


DO AMOR À VIDA
É notável que um homem racional, depois de ter alcançado a maturidade dos anos e a faculdade de julgar, dificilmente escolheria ser mais jovem, na suposição de que também devesse viver em condições melhores esses anos revocados e os que ainda lhe fossem iminentes. Ele está contente de ter $ tanto para trás. Apesar disso ele desejará vir a ser tão velho quanto os homens podem tornar-se, no entanto sob boas condições, porque a própria longevidade parece ser uma benemerência pela humanidade que lhe foi confiada, e um dever de elevá-la tanto quanto possível. Mas se homens devessem viver ainda muitas centenas de anos, isso lhes ocorreria antes como uma difícil prova dos homens do que como uma beneficência da Providência.

Colaborador:Rodney Eloy

Fonte:Oglobo

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