16 de outubro de 2008

Sistema marcado pela contradição - Karl Marx

Durante muito tempo, Marx foi um dos raros autores que se preocupou com o fenômeno das crises econômicas, considerando-as inevitáveis e inerentes ao sistema capitalista. A maioria dos economistas insistia na capacidade harmonizadora do mercado, relegando as crises a um segundo plano, como algo apenas casual e externo. Outros - mais respeitados por Marx, como Ricardo ou o suíço Sismonde de Sismondi (1773-1842) - até reconheciam a importância delas, mas as concebiam como um limite com o qual o sistema econômico deveria saber lidar. Depois, até em todo o século 20, registra-se um movimento pendular entre fases de predomínio teórico do harmonicismo e fases em que crises violentas, como a de 1929 ou a dos anos 1970, forçaram a incorporação delas ao pensamento econômico aceito pela tradição acadêmica e de instituições oficiais.

Mesmo nesse caso, contudo, as crises se revestem de um caráter funcional, entendidas como mal necessário ou como crises de crescimento, ou ainda, na melhor das hipóteses, como indicadores da incapacidade do setor privado resolver seus problemas sem a intervenção do Estado.

Na teoria de Marx, por outro lado, elas revelam a emergência da dimensão negativa de um sistema marcado pela contradição. Ao contrário do pensamento econômico tradicional, aqui a crise está intimamente associada à crítica. Mas não a uma crítica subjetiva de alguém que analisa de fora e condena, e sim a uma crítica objetiva: desnudando a dimensão negativa no mau funcionamento do sistema, indica-se como o próprio sistema realiza uma espécie de autocrítica. Se o capital é valor que se valoriza, os momentos em que ele desvaloriza o valor existente de maneira inevitável, comprometendo assim a base de seu crescimento, são momentos em que ele mesmo se contradiz, negando as condições de sua existência.

Dito desse modo parece pouco problemático. Mas a teoria das crises de Marx permitiu leituras diversas e conflitantes até entre seus seguidores. Houve quem as atribuísse a meros desequilíbrios entre os setores da economia, ou a uma incapacidade crônica da produção criar mercados, devido às condições antagônicas da distribuição dos produtos no capitalismo; houve ainda os que as circunscreviam ao âmbito financeiro, como se o da produção já não fosse contraditório.

A controvérsia surgiu da forma complexa de apresentação das categorias na teoria de Marx. Há passagens que justificam uma ou outra das interpretações, e na seqüência a desacreditam. O problema pode ser equacionado, no entanto, levando-se em conta o todo da obra e, principalmente, o projeto de Marx desdobrar cada forma do sistema como resultado da negatividade das formas anteriores, indo do mais geral ao mais específico e intrincado.

Em primeiro lugar, então, é preciso retomar o aspecto geral. No final do capítulo 3 foi citado um texto que pode servir muito bem nesse sentido: "O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, sugando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga". Vimos como essa passagem sintetiza bem a contradição constitutiva do capital em sua relação com a força de trabalho. Mas um aspecto central deve agora ser acrescentado. É que, ao comprar e incorporar a força de trabalho, o capital está também se apropriando da capacidade de medir o valor, que o trabalho abstrato possui numa sociedade de troca de mercadorias. O capital adquire com isso não só a propriedade de se valorizar como a de medir essa valorização; ele se valoriza e se mede.

Mas a sua relação com a mensuração é contraditória, como também sua relação com a valorização, porque ambas derivam da oposição entre capital e trabalho. Ao mesmo tempo que integra a força de trabalho, o capital também precisa negá-la, substituindo-a por máquinas; ou seja, ao mesmo tempo que adquire a capacidade de se medir, o capital reitera que essa capacidade pertence a um agente que ele mesmo põe como seu oposto. Perde então as suas medidas.
Em todos os níveis da apresentação das categorias de O Capital, aparece essa determinação contraditória da medida e da desmedida. É por ela que vão se definindo em cada nível os distintos conceitos de crise. Se algum deles for isolado dos demais, pode parecer que oferece a única definição possível, invalidando as outras - caminho seguido por grande parte das intérpretes de Marx. Mas, de fato, também o conceito de crise obedece à forma da apresentação que vai do mais geral ao mais complexo, também ele vai enriquecendo seu conteúdo junto com o conceito de capital.

Marx faz questão de indicar a possibilidade de crise já no nível da produção e circulação de mercadorias, refutando qualquer pretensão de que o mercado pudesse ser sempre harmônico. Aqui, a medida aparece na passagem fluida entre compras e vendas, quando há correspondência entre as quantidades do que se produz e do que se demanda; a desmedida, ao contrário, é quando não ocorre tal correspondência, interrompendo o movimento.

A forma desse movimento é descrita por Marx em termos que valem também para as fases seguintes da apresentação: "[] o percurso de um processo através de duas fases opostas, sendo essencialmente, portanto, a unidade das duas fases, é igualmente a separação das mesmas e sua autonomização uma em face da outra. Como elas então pertencem uma à outra, a autonomização [] só pode aparecer violentamente, como processo destrutivo. É a crise, precisamente, na qual a unidade se efetua, a unidade dos diferentes".
A compra e a venda de mercadorias, em primeiro lugar, são as "fases opostas" do processo em que se vende para comprar. Como se realizam pela mediação do dinheiro, elas assim se "separam e autonomizam uma em face da outra", podendo não coincidir. Mas a crise não assinala simplesmente o momento negativo, da não coincidência, e sim a impossibilidade de que essa situação permaneça por muito tempo.

Como as fases de compra e venda se diferenciaram por força de um processo único, que dialeticamente tem de se realizar mediante sua diferenciação em duas fases, chega um momento em que essa autonomia não pode prosseguir. A unidade do processo se afirma, mas como reação violenta à autonomização das fases. No mercado como um todo, a discrepância possível entre compras e vendas precisa ser corrigida e, quando isso acontece, verifica-se a incompatibilidade entre os valores daquilo que se comprou e agora tem de pagar com o dinheiro de uma venda que pode não ocorrer. Segue-se um ajuste violento de contas, e valores simplesmente desaparecem.
Essa forma geral da crise se reapresenta quando a finalidade é definida pelo capital como a de "comprar para vender". A discrepância ocorre no mercado de trabalho, ou nas compras e vendas recíprocas dos vários setores em que se divide a produção entre os capitalistas, ainda mais considerando que tudo isso se realiza pela concorrência. A discrepância de valores significa então que alguns terão prejuízo, talvez grande, vindo a falir. Parte do capital existente se desvaloriza, negando o próprio conceito de valor que se valoriza.

2 comentários:

Anônimo disse...

Os anos 90 foram tempos de grande prosperidade nos Estados Unidos, a mais forte economia do mundo. No comando estava o "senhor dos mercados", Alan Greenspan, chefe do banco central americano. É curioso que analistas sérios possam ter acreditado que a saúde econômica mundial dependesse da batuta de maestro de um único homem. Dá para crer que a inacreditavelmente intrincada complexidade da economia global pudesse ser conduzida intuitivamente por um super-homem, que quando sentia uma dorzinha ominosa nas articulações baixava os juros e quando ouvia uma misteriosa voz interior os aumentava? Pois é nisso que a mídia dominante quis que se acreditasse. A verdade é bem outra. Greenspan pisou no acelerador da expansão monetária em meados dos anos 90, aumentando a quantidade de dinheiro em 10% ao ano e depois em 15% ao ano. Por que fazer isso? Porque politicamente é interessante; os políticos têm horizonte de curto prazo e fazem qualquer negócio para que a economia cresça, mesmo que esse crescimento seja insustentável. Seus sucessores que se virem com a crise.

Essa orgia de dinheiro barato desencadeou os investimentos de longo prazo insustentáveis previstos na teoria austríaca dos ciclos, bem como jogou gasolina nas brasas da especulação desenfreada. As ações da Nasdaq foram à estratosfera, muito embora fosse público e notório que as novas empresas "ponto.com" levariam anos, e até décadas, antes que começassem a operar no azul. Greenspan começou a falar em "exuberância irracional" na época, mas era ele quem estava abrindo as comportas da irracionalidade. E ele sabia disso muito bem, vez que foi aluno de Ludwig von Mises e conhece a teoria monetária das crises muito melhor do que Marx.

Anônimo disse...

Durante muito tempo, a pobreza foi o lote comum da humanidade e a
possibilidade de crescimento permaneceu desconhecida. Este crescimento é um evento histórico considerável e recente. Em apenas uma geração, o crescimento se estendeu por todas as partes do planeta.

O seu motor é a inovação; a inovação nunca é linear, ela se dá através de saltos. Nem toda inovação é um sucesso; algumas desaparecem por serem inúteis, outras se mostram mal controladas.

Como a economia, a inovação progride, portanto, por tentativa e erro: os ritmos econômicos se ressentem disso, ciclos nascem a partir daí. Nos Estados Unidos, uma verdadeira inovação - a securitização - aumentou recentemente as possibilidades de crédito, pulverizou os riscos e
contribuiu dessa forma para o forte crescimento mundial dos últimos dez anos. Porém, uma má avaliação dos riscos e o entusiasmo dos especuladores (um efeito bolha) quase destruíram o sistema financeiro internacional.

O Estado americano interveio, para comprar as dívidas ruins, pois, o
Estado na economia liberal é sempre o último recurso. Essa pane no capitalismo não é uma pane do capitalismo: por mais imperfeito que seja, o capitalismo continua sendo o motor incomparável do
desenvolvimento para o grande benefício da humanidade. Este livro
relata a história do crescimento e as condições de sua continuidade. A
mensagem? Aprender com seus sucessos e erros, sem jamais renunciar a uma abordagem científica, sem jamais ceder nem à euforia, nem ao pânico. O pior que pode acontecer em caso de crise, é renunciar aos conhecimentos adquiridos para recair nas paixões ideológicas: paixões que, no século passado, mataram mais do que qualquer epidemia.

Guy Sorman
São Paulo, outubro de 2008.