3 de março de 2009

Ética e desespero em Kierkegaard

A concepção ética em Kierkegaard é exposta em pelo menos três tratados de sua obra geral. O primeiro, escrito sob o pseudônimo de Vítor Eremita, é Estudos no Caminho da Vida, com o subtítulo de Considerações de um homem casado sobre o matrimônio: respondendo às objeções; a segunda é A Alternativa, de onde também constam duas suas outras memórias sob o nome do acessor Wilhelm, chamados Valor Ético do Matrimônio e Equilíbrio da estética e a ética na formação da personalidade.

Kierkegaard pensa que o salto entre os estádios existenciais em geral comporta a categoria do desespero. Há pelo menos três formas de desespero: o desespero-em-debilidade, que carateriza o homem que vive na ignorância do seu ser espiritual, do absoluto que o homem pode e deve chegar a ser; o desespero-reto, que é o desespero em relação a eternidade, aquele em que o desesperado abusa da eternidade inerente ao seu eu, e o desespero demoníaco, o da repulsa e da negação pura, aquele em que o homem, ainda que ciente dos tormentos que o aguardam na eternidade de sua pós-vida, prefere ser ele mesmo mas nunca disposto a pedir auxílio.
Os verdadeiros desesperados não são aqueles que têm consciência do próprio desespero, nem os que se confessam desesperados. Pelo contrário, são aqueles que ignoram o desespero, os que escondem para si mesmo o próprio desespero, os que querem desesperadamente dispor de si mesmos.



Para Kierkegaard o desespero é uma doença mortal quando seu resultado é a sujeição do homem ao seu eu desesperado, fazendo-lhe desesperar de si mesmo relativamente ao eterno. Quando o desespero humano é relativo ao problema da eternidade, do absoluto último suposto pela natureza do ser, ele se torna inevitavelmente mortal mesmo na morte. Ou seja, nem a morte mesma pode livrar o homem desse desespero, posto que ele é um fim sem fim. Nele a morte é justamente o não poder morrer, o unificar-se com o eu desesperado, do qual se torna impossível separar-se jamais.



Ao nível da ética o desespero é a porta para a grandeza quando ela é a negação absoluta e definitiva do finito, isto é, de todos os gozos que a estética oferece. Aqui, quem escolhe o desespero se escolhe necessariamente a si mesmo, não no imediato e como indivíduo acidental – o que é próprio da estética -, mas se escolhe a si mesmo em seu valor eterno. Para Kierkegaard isto é verdade também com relação ao desespero nascido do sentimento do pecado total que constitui a natureza. Em suas considerações teológicas ele o considera como algo que conduziria a Cristo e à certeza do seu perdão. É na concreção da salvação reside o desespero como realidade extinta.



É na consciência que o desespero cresce em profundidade, do mesmo modo que a consciência cresce em intensidade com o desespero. Observa Kierkegaard que até o desespero-reto, que é o desespero elevado ao seu mais alto grau de intensidade, é raro no mundo, tão raro como a aguda consciência de si mesmo e da eternidade que há no homem. Mas isto não eqüivale a dizer que a maioria dos homens não estão em desespero nem que, por assim dizer, que o pecado não exista. Na realidade, para ele a imensa maioria vive em desespero, embora sentido apenas num nível bem inferior. Este é, exatamente, o estado mais grave de desespero que existe.



Para Kierkegaard a maioria dos homens vive uma vida separada do bem, uma existência completamente a-espiritual a tal ponto que nem faria sentido chamá-los de pecadores. E pelo fato de que a categoria do desespero vem junto com o mal, mesmo não reconhecido, Kierkegaard sustenta que em tal estado de existência todo o mal consiste em deixar-se viver completamente desprovido de espiritualidade, ou seja, apenas totalmente ligado ao temporal. “É, pois, um destino que se sofre mas não se quer? De modo nenhum. Isto não é próprio do homem na medida em que ninguém nasce ser a-espiritual e, por numerosos que sejam aqueles que na hora da morte não levam consigo outra coisa como resultado de sua vida, a culpa não deve achacar-se à vida”.



Posto que o desespero de muitos aumenta na ausência dele, o pecado ou o mal consiste igualmente na ausência mesma do pecado. Mas isto não quer dizer que haja algum mérito em se ser verdadeiro pecador, ou em levar o desespero à intensidade do desespero reto. Para Kierkegaard o mal autêntico consiste, sim, em deixar-se em tal estado de ignorância em que se perde a consciência dos próprios atos e da própria qualidade moral. Deixar-se arrastar, pouco a pouco abaixo do que é autenticamente humano, até à situação em que se torna impossível discernir o bem do mal.



O desespero é, por isso, também dialético e se abre para direções diversas. Não é um valor totalmente negativo, pois tem sua virtude. Envolve a salvação e a perdição, o orgulho diabólico e a humildade cristã, o abandono e a eleição, a verdade e a mentira, a eternidade e o tempo. O desespero estabelece uma fronteira. Tudo na vida depende da maneira de desesperar-se. Se o desespero não consegue provocar uma ruptura no fundo da alma e conduzir ao amadurecimento, o indivíduo está inexoravelmente perdido. Mas se o desespero força a alma a reunir seus últimos recursos, a “desesperar na verdade”, então ela desperta na consciência o próprio valor eterno, rompendo assim o círculo do finito.



Desse modo, o que importa é desesperar verdadeiramente. Para Kierkegaard é preciso desejar o desespero com sinceridade. Isto porque quem o deseja verdadeiramente, ao mesmo tempo também se liberta do desespero. Como ele afirma, “quando se escolheu de verdade o desespero, se escolheu também com toda a certeza o que escolhe o desespero: sua própria pessoa em seu valor eterno”.





Fonte: Zengo

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