8 de setembro de 2009

O que é amor platônico

Filosofia e medicina; Platão e Freud – há aproximações?(1) Quem é que não busca “coisas sobre o amor” para ler? E quem é que não conversa sobre o amor e sexo com seu médico? Freud, o médico, leu Platão, o filósofo. Penso que Platão, homossexual em uma cultura pagã, adoraria ler Freud, heterossexual em uma cultura judaico-cristã.

Freud inventou a Psicanálise (com P) – a medicina tentou ser filosofia. Platão inventou a Filosofia (com F)(2) – uma espécie de medicina da alma. Ambos fizeram avaliações a respeito dos frutos mais sofisticados de nossa cultura ocidental. E o belo, para eles, esteve sempre em alta nessa avaliação. Também quiseram explicar como era a gênese dessa sofisticação cultural. Suas explicações apontaram para um mesmo elemento. Na cultura em que Platão viveu esse elemento não era pertencente ao indivíduo. Era algo exterior, do mundo. Para uma boa parte, tratava-se de uma divindade. Seu nome era Eros, o amor.(3) No âmbito da civilização moderna e romântica em que Freud viveu o amor já havia caído para o “interior”, tinha se tornado força psíquica. Freud lhe chamou de libido, de energia sexual.

Freud e Platão colocaram o amor e, portanto, o desejo, como aquilo que está na base da força que nos impulsiona para a criação cultural. Mas há diferenças. Platão não responsabiliza o amor por toda e qualquer criação cultural, mas somente as mais sofisticadas. Freud preferiu ser mais democrático, e deu à libido a responsabilidade de toda e qualquer criação que pudesse ser chamada de elemento da civilização. As transformações da energia sexual, que Freud chamou de sublimação – uma espécie de elaborado auto-recalque –, estariam na gênese dessa fantástica criação humana que é a civilização. Platão apontou para algo semelhante. Todavia, tratava-se de algo mais parecido com uma escada, e não um caminho qualquer. Uma escada que daria, a cada degrau, não uma etapa a mais na elaboração do auto-recalque, mas uma escada que faria o desejo sair do âmbito do inicialmente particular e ir para o mais geral – do mais relativo para o que beira o absoluto.

Para Freud esse caminho poderia ser percorrido pelo homem com algum êxito. Caso tudo desse certo, a Psicanálise seria a forma de descrição desse caminho; ela não teria que ter um apêndice denominado terapia psicanalítica. Seria uma medicina descritiva, acadêmica. Sua função seria apenas a de mostrar o funcionamento de todos nós. Para Platão a escada não havia sido feita para todos e, portanto, não haveria perigo de qualquer tropeço em algum degrau. Cada escolhido para subir logo sentiria, já no primeiro degrau, suas potencialidades e, então, teria condições de decidir continuar ou não. Eros lhe diria claramente isso. E este é o ponto em que as semelhanças entre Freud e Platão diminuem.

No processo de descrição do caminho de produção da civilização, Freud detectou algo que ele denominou de “mal estar”. Muitos não agüentariam o necessário para passar do recalque ao auto-recalque e deste para a situação sublimada. Adoeceriam. Então, a Psicanálise teria sempre de ser uma medicina, uma atividade de prescrição de receitas e administração de remédios. Enfim, Freud jamais pressentiu qualquer ameaça ao seu emprego de médico. Ao contrário, ele até chegou a dizer que, no futuro, a medicina tradicional, com remédios químicos, voltaria a predominar no âmbito dos problemas psíquicos – e isso seria o correto. Por conta de drogas medicinais alguns de nós, apesar dos problemas adquiridos no esforço civilizatório, poderiam ser felizes.

Diferentemente, Platão não viu a subida da escada como produzindo qualquer tipo de mal-estar. Nenhuma doença adviria por conta de se querer encontrar as Formas, o mais Real e, por causa disso e nesse processo, exercer plenamente a filosofia. Quem sobe as escadas começa tal empreendimento de maneira sadia e termina de maneira sadia. Ao final, tocando as Formas, o mais Real, tem tudo para ser feliz. Eis que o projeto de eudaimonia se faz possível. Essa escada platônica é aquilo que está contado em seu livro O Banquete.

O Banquete tem como cenário uma festa. A festa é na casa de Agatão, um jovem poeta. E o motivo da festa é a comemoração do prêmio recebido pelo anfitrião, uns dias antes, em um concurso de poesia. Durante a festa, em determinado momento, há a proposta de se falar sobre o amor – Eros. Todos tecem suas considerações, tentando expor o que entendem como sendo o amor. Agatão é o penúltimo. Sócrates, o último.

Sócrates diz que não vai fazer um grande discurso, mas apenas contar o que uma mulher da Mantinéia, a sábia Diotima, lhe havia ensinado sobre o amor. Teria sido ela a responsável pela iniciação de Sócrates no que denominou de “os mistérios do amor”.

No relato de Diotima o Amor é concebido no dia de nascimento de Afrodite, por um “golpe” de Penúria sobre Recurso. Recurso adormece e Penúria deita-se a seu lado. Enfim, consegue engravidar. O Amor, filho de ambos, ganha características do pai e da mãe: sempre oscilando entre dois pólos. Um pólo, o das completudes, como o pai, e outro pólo o das carências, como a mãe. O Amor não é um deus, mas um gênio, um tipo de espírito. É um gênio que está sempre entre dois extremos. Assim, estando a meio caminho, tem consciência do que é a carência e do que é a completude, e busca a primeira. Por isso o Amor é busca. A natureza do Amor é a de buscar o belo, em um sentido amplo da palavra, que engloba também o bem. O que é belo é o que é digno de ser amado, e o Amor assim faz. Age de modo a ter a posse do que é desejado; e conseguindo isso, atinge a satisfação e tem tudo para ficar feliz. E podemos admitir que todos querem ser felizes. Todavia, se assim é, qual a razão de nem todos estarem enamorados, uma vez que isso seria, no limite, querer ser feliz?

A resposta de Diotima para esta pergunta, que ela mesma faz, é de que nem todo tipo de busca é denominada por nós de amor. O que os apontamos que estão enamorados querem é o que há de melhor, o bem; e querem o bem para os seus, os de sua casa e relações. E o querem para sempre. Então, notamos que o amor é querer o belo e o bem eternamente. Mas como conseguir isso? Ora, o amor quer não a beleza, ele quer a geração e a reprodução da belo – eis aí como ele pode se aproximar da eternidade. Assim, é dando à luz coisas físicas ou espirituais belas e boas que se pode garantir a imortalidade. E para tal o amante deve procurar o que é belo e bom, para poder gerar o que é belo e bom.

Diotima continua, e passa ao final de seus ensinamentos falando da imagem da escada. Esta escada é a própria atividade da Filosofia (isto é, a filosofia de Platão). Trata-se da busca das Formas. Na juventude o amante inicia seu percurso buscando corpos belos. Corpos belos no seu todo. Passa então para almas belas. Em ambos os casos, percebe que os corpos belos e a almas belas são diferentes entre si e, então, vê que o que os faz belos é o compartilhar de algo que é a beleza. Mas este que filosofa não pára, pois é do amor o impulso, o desejo, o querer ir adiante. Indo adiante, aplica-se a mais coisas, adquirindo mais vivências. A cada elemento que encontra e a cada situação vivida, percebe que não é no exemplar que deve permanecer; sente que é no que é comum entre os exemplares que deve dirigir sua atenção. É o que o exemplar compartilha com outros exemplares, no sentido de ser belo, que está o tesouro procurado. E assim, para cada coisa, alcança o seu belo não na própria coisa, mas vê que o belo é algo mais acima, que cede sua condição aos exemplares. E eis que o que sobe as escadas, o filósofo, chega ao resultado de seus esforços: alcança o que é belo em sua própria natureza. Diotima enuncia o que, por outras obras platônicas, inferimos como sendo o caminho para o Mundo das Formas, sendo que, no caso, trata-se da Forma Belo – a Beleza. Como é isso? Diotima explica:



Ela [a Beleza] não lhe aparece como uma idéia ou um tipo de conhecimento. Não está em algum lugar em uma coisa, como em um animal ou na terra ou nos céu ou em algum outro lugar, mas ela própria por ela mesma e com ela mesma, é sempre uma em forma; e todas as outras coisas belas exercem um compartilhamento nisso, de tal modo que quando outras coisas emergem ou perecem, ela não se torna nem um pouco maior ou menor nem sofre qualquer mudança. Assim, quando alguém aparece subindo por esses estágios, através do correto amor de garotos, e começa a ver esta beleza, já quase agarrou seu objetivo. Isto é o que é ir corretamente, ou ser conduzido por outro, no mistério do Amor: ele vai sempre mais acima por razão desta Beleza, começando das coisas belas e utilizando-as como degraus de subida: de um corpo para dois e de dois para todos os corpos belos, então, dos corpos belos para os belos costumes, dos costumes para o aprendizado das coisas belas, e dessas lições ele chega no fim nesta lição, em que há o aprendizado dessa completa Beleza, assim, no final ele acaba por saber exatamente o que é ser belo(4).



Não é difícil ver que isso não é uma “pedagogia de sala de aula”. Nem é uma “filosofia de escola”. É um caminho de uma vida toda. Não é algo que pode ser aprendido nos livros. É a continuidade de experiências vitais, que envolve inicialmente parceria amorosa e sexual, e que continua em formas de parcerias amorosas envolvendo vivências cada vez mais complexas. Não é um processo mental de abstração (ou seja, não se trata da abstração de Aristóteles), mas é um processo de acúmulo e enriquecimento de experiências que preenchem uma vida. A filosofia de Platão, neste caso, abandona todo e qualquer parentesco com a atividade de ler e escrever a partir exclusivamente da reflexão, e se mostra curiosamente mais próxima de uma práxis, como as filosofias pós-aristotélicas. Não é uma terapia, como ocorrerá em várias das propostas do helenismo tardio. Mas, sem dúvida, é um percurso vital, algo digno da atividade socrática como ela foi entendida – contra o platonismo – por vários dos filósofos não-escritores pós-aristotélicos.

Aprendemos por essa passagem de Diotima, então, que a Filosofia tem por base o amor, o movimento do amor. Muitos que lêem este trecho o tomam como uma maneira de ver os passos de uma dialética ascendente, que leva o homem de percepções e crenças para conceitos e princípios, tendo em mente o modelo posto na Alegoria da Caverna e na Teoria da Linha Dividida, que estão em A República. Esta visão a respeito do que Platão fez não é um erro. Mas faz-se necessário tomar tal dialética como um processo da práxis vital de quem se dedica a viver na filosofia e pela filosofia.

Há, também, uma questão que está nesse parágrafo da citação que nos leva a notar outras coisas. Surge aqui o que aludíamos no início, que é o ponto de contato com Freud(5).

Comentando O Banquete, Gregory Vlastos vê Platão como “o primeiro homem no Ocidente a perceber quão intenso e apaixonado podia ser nossa articulação a objetos tão abstratos quanto são as reformas sociais, a poesia, a arte, as ciências e a filosofia – uma articulação que tem mais da fixação erótica do que alguém teria suspeitado em uma visão de homem pré-freudiana”.(6)

Vlastos se põe admirado ao ver que Platão percebe que podemos ficar loucos de paixão, como em qualquer paixão por um garoto (ou garota), também por elementos abstratos, por conta de vermos beleza neles, beleza em uma equação ou em um projeto social e político. Todavia, diferentemente de Freud, essa vivência da beleza (e do bem) em diversos aspectos e objetos, não faz Platão tomar a direção do processo de sublimação que, ao final nos dá a cultura ou civilização. Platão toma o caminho da “fome para criar”. O que a beleza desperta nos faz subir a escada, indo na sua busca, e aplacando momentaneamente o desejo por meio da criação de coisas belas, às vezes coisas que aparecem a alguns como objetos não estéticos, puramente intelectuais

É preciso dizer mais? Talvez algumas palavrinhas sobre “amor platônico”.

Há autores que cometem o erro de ver esse caminho da energia erótica, que parece se dessexualizar ao final, como o que seria o amor platônico; então tomam a expressão “amor platônico” como o correto para descrever o processo. O erro aí é que o “amor platônico” é tomado no âmbito do senso comum – que inclusive pode estar nos dicionários – como o amor por algo idealizado e, então, irreal, enganoso. Ora, nada há de menos enganoso do que as Formas, o ponto de chegada do impulso erótico. Pois elas são, para Platão, o que há de mais real, são a base ontológica de tudo. E quem faz esse percurso, anda por uma pedagogia que é, ela própria, o caminho da Filosofia. Não pode chegar ao fim e ao cabo e estar em engano. Ao final não se está com um saber exclusivamente intelectual nas mãos, não se está de posse da “Ciência”, e sim de posse de uma realização, uma vida completada. Não à toa esse trajeto, para Platão, faz parte do processo para a realização da eudaimonia.

O amor platônico correto não é o amor romântico. Não é o amor dessexualizado que pode se dirigir a um objeto de desejo que nada tem de real e, enfim, é produto da imaginação. No amor romântico pode haver a construção do objeto como o que não só não é real, mas uma vez confrontado com o real que o inspirou, é o oposto deste. O homem romântico precisa abaular sua “vida interior” com fantasias (caso contrário, não seria romântico). O amor platônico que vai para as Formas não caminha pela imaginação; muito menos é um “exercício”, ele é o caminho vivido e que faz com que possamos nos regozijar por diminuir nossos erros, nossa cegueira. Subir a escada e chegar ao topo permite tocar as entidades ontológicas reais. Eis então que tudo que se quer produzir deixa de ser complicado, pois se está em contato direto com os paradigmas máximos de todas as coisas. O amante platônico é o que não erra, se errasse, toda a Filosofia(7) seria um erro. E o projeto de eudaimonia associado a isso seria um pré-determinado fracasso.

Fonte:Portal Brasileiro de Filosofia

Um comentário:

jOHn disse...

Pq vcs filosofos enrolam tanto pra falar de algo tão simples?