26 de outubro de 2009

Platão, Sócrates e os modos de filosofar (ou: Existe Filosofia Clínica?)

1. O charlatanismo e a confusão

“Filosofia Clínica” existe? É algo válido? Alguns sofistas chegaram a ter “clínicas” que lembram um pouco nossa atividade atual do psicólogo ou psiquiatra dedicados à clínica e à terapia ou terapias. Mas isso não legitima ninguém a dizer que, com algum tipo de formação em filosofia, possa vir a “clinicar”.

Freud vê FC como lixo - e está certo!A atividade da clínica – no sentido corriqueiro do termo – é específica e, em geral, os psicólogos e psiquiatras têm certa razão ao privilegiarem uma longa formação e uma experiência prática não menor para, enfim, dar aval para a atividade clínica. Não é com frases filosóficas disparatadas ou com saberes de conta gotas filosóficos – como os que eu encontro em livros e cursinhos de “filosofia clínica” no Brasil – que alguém poderia clinicar. No Brasil há psiquiatras famosos com formação filosófica, como Jurandir Freire Costa ou Contardo Calligaris por exemplo, mas duvido que endossariam algo como o que está aí, na praça, sendo denominado de filosofia clínica. Antes um psiquiatra culto que qualquer figura se dizendo filósofo clínico.

Abro parênteses.

Todavia, como a formação do psicólogo e do psiquiatra, no Brasil, deixa muito a desejar, então ninguém vai estranhar se alguém com formação filosófica tão ruim quanto a deles vier a abrir uma clínica. Da minha parte, espero apenas que os brasileiros tenham dinheiro suficiente para pagar clínicos autênticos com formação sólida. O que encontro clinicando, mesmo sendo psiquiatras velhos, em geral, são fracos.

Volto à filosofia e sua relação com a clínica.

Talvez nem mesmo um conhecimento mais extenso em filosofia permita a alguém, hoje em dia, sem formação médica acompanhada de outras formações, a realmente clinicar. Seria um absoluto non sense imaginar que a atividade da clínica, atualmente, está dissociada da atividade farmacológica e com os estudos de fisiologia aplicada feitos seriamente. Por isso, quando eu vejo esses cursinhos de “filosofia clínica” e, pior ainda, quando deparo com alguém se intitulando “filósofo clínico”, procuro desconversar até para evitar dissabor. Pois como em tudo em que há muita vontade corporativista e pouco saber, há só dor de cabeça. Não vale a pena “bater boca” com algum “filósofo clínico” – em geral é completa perda de tempo. Virou mais uma seita corporativa, se é que já não nasceu com essa intenção. Mais um sindicato. Logo a Associação de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF), que também virou uma seita, irá endossar isso. Tudo em nome da idéia de “companheirada”. Só se dá bem quem tem seu grupo, sua religião, seu sindicato – o Brasil de Mussolini e Chico Ciência venceu. E daqui uns dias essas corporações todas terão seu dinheiro vindo do Estado! Ou de contribuição obrigatória, regrada pelo Estado! Um imposto sindical obrigatório para profissionais quaisquer, inclusive filósofos clínicos.

Mas, então, se é só isso, não há nenhuma razão para algo como a clínica-com-uso-de-filosofia fazer algum sentido efetivo? Ela foi uma invenção de puro charlatanismo? Seria apenas fruto de uma vontade de ganhar algum dinheiro com a “modinha da filosofia”, que invade alguns grupos de classe média alta e acolhe senhoras com muito tempo disponível? Seria um coadjuvante da modinha dos “cafés filosóficos” e “casinhas do saber”? É o vale tudo de professores frustrados para ainda continuarem a ser considerados como classe média?

No cotidiano brasileiro, eu duvido que possamos realmente dar algum sustento para o que está aí como “filosofia clínica”. Todavia, a idéia de filosofia como uma atividade em que os problemas centrais da metafísica não estão colocados, e que saberes da ordem da condução da vida devem ser priorizados, não é estranha à tradição ocidental filosófica. Ela está na base da possível distinção entre Sócrates e Platão. Então, vale a pena pegar exatamente a questão do surgimento da filosofia clínica para abordar essa distinção. Do que é ruim, vamos tirar uma bola lição?

2. Dois tipos de filosofar

Suponha você que encontrou um Gênio, desses que aparecem aí para o Aladim e Cia. Como esse gênio está no Brasil e aqui é um lugar onde o hino diz que se está em berço esplêndido, o Gênio acredita que seria muito conceder três pedidos, então ele oferece apenas um. O que você pediria? Saúde ou dinheiro ou poder (inclusive com relação ao sexo)? Ora, se isso ocorresse com um filósofo, ele pediria “para errar menos”. Pois saúde, dinheiro e poder são coisas que podemos perder quando não sabemos discernir prioridades em situações, avaliar comportamentos, compreender problemas, julgar ações etc. O que o filósofo mais teme, desde Parmênides, é pegar a “via da opinião” antes que a “vida da verdade”. “Herrar e umano” – eis aí algo que o filósofo não gosta de ouvir a respeito dos humanos, uma vez que ele próprio é humano.

Assim, a atividade filosófica sempre foi, desde seu início, uma atividade ligada ao saber enquanto aquilo que deve evitar o erro e a ilusão. Simples, não? Quase simples, mas nem tanto, pois é aqui que a filosofia se divide e que todo um rol de problemas se colocam.

Descartes nos ensinou nas Meditações a não confundir o erro psicológico com a ilusão metafísica. A ilusão metafísica ele trata nas três primeiras meditações, o erro psicológico ele trata na quarta meditação. Essa distinção foi a que colocou Sócrates e as “escolas socráticas” do helenismo tardio de um lado, e Platão e o platonismo de outro.

Platão descreveu de modo alegórico a ilusão metafísica por meio da Alegoria da Caverna. Sócrates buscou sanar o erro comum seguindo sua máxima “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”. Vamos a ambas.

A Alegoria da Caverna não deve ser tomada como alguma coisa que descreve uma situação aplicada a qualquer um: um grupo viveria na ilusão e, então, teria de sair dela e encontrar a realidade. Nada disso. A caverna é a nossa vida mesmo. Não vamos sair dela – não enquanto estivermos vivos. Quem saiu foi o filósofo – só ele. Mas em parte. Saiu pelo intelecto, não “de corpo e alma”. E ser filósofo não é para qualquer um. Tanto é que Platão faz do filósofo um candidato sério a rei e ao rei obriga a filosofia. Isso não deve ser visto como um elitismo. Pode até ser, mas não tem de ser lido exclusivamente por esse lado, político e social, digamos assim. Isso tudo tem de ser entendido da seguinte forma: não saímos da Caverna por que ali não estamos cometendo um erro psicológico, que poderia ser sanado pela instrução ou por um aviso ou informação, mas estamos envoltos em uma ilusão que, ela própria, faz parte da estrutura da vida em que estamos – faz parte da existência. Não estamos em um erro na Caverna, estamos vivendo numa Caverna. Em outras palavras: a Matrix é um exemplo de Caverna mais apropriado, em que se sabemos ou não da ilusão, nada muda.

Agora, com Sócrates a questão é diferente. Ele foi nomeado pelo Oráculo de Delfos como o ateniense mais sábio, e então ele passou a investigar sua vida de modo a contestar o Oráculo, para tentar, pela negativa, ver o que a pitonisa teria realmente dito com aquela conversa de que não havia ninguém mais sábio que ele, Sócrates. Ele foi exercer o “conhece-te a ti mesmo”. E para tal, não entrou em nenhuma atividade de introspecção. Fez o que era o de bom senso para um grego antigo: investigou seus concidadãos a respeito do que diziam saber. Ao que se denominava corajoso perguntou o que é a coragem e ao que se denominava devoto perguntou o que é a devoção. E fez assim, lançou perguntas do tipo “o que é F?” Queria conceitos ou, melhor dizendo, definições. Pois Sócrates entendia que não se poderia de fato afirmar ser corajoso se não se sabia o que era a coragem. E mais: Sócrates não acreditava que alguém poderia errar por outra coisa que não a falta de conhecimento autêntico. Evitar o erro era, antes de tudo, ter nas mãos algum saber e, então, poder responder sobre a natureza do que estava envolvido em questões do tipo “O que é F?”.

Sócrates acreditava piamente que ele poderia encontrar respostas. Caso alguém as tivesse, poderia então escapar do erro. Teria sido informado. Com melhor capacidade intelectual a partir da informação, sua formação melhoraria. Conduziria sua vida de modo a errar menos. Teria uma vida sábia e, portanto, virtuosa – saber e virtude se igualavam para Sócrates. Virtude é conhecimento – endossou ele.

Mas esse não foi o caso de Platão. Este, por sua vez, se cansou de ver Sócrates gastar uma vida toda e não encontrar nenhuma resposta. Então, passou a imaginar que a questão não era a do erro psicológico, do erro que é fruto do não saber e do equívoco. Passou a achar que o erro era um tipo especial de ilusão, e que, em princípio, não poderia ser sanado, pois era inerente à própria estrutura da vida, do mundo. Assim, o mundo não nos diria alguma coisa sobre o “caminho da verdade”, mas já conteria o “caminho da verdade” e também, conjuntamente, o “caminho da opinião”. O vivido existente comportaria a própria ilusão como real. É a Caverna. É ali que vivemos – enfatizou Platão.

Caso você se entenda na Caverna, não passará a achar que as sombras que vê são apenas sombras por alguém ter lhe contado ou, mesmo, por ter pensado sobre o assunto. Mesmo o filósofo, que é quem sai da Caverna, uma vez dentro da Caverna pela segunda vez não conseguirá desmascarar a situação. Pois é a própria estrutura da Caverna que funciona daquele modo – ele teria de destruir a Caverna para tal. Mas isso significaria arruinar a existência.

A atividade de Platão proliferou no âmbito filosófico. Criou a filosofia como uma investigação metafísica e epistemológica. Outros tentaram reestruturar a teoria da ilusão metafísica, como Kant, que a tornou necessária a partir das “idéias da razão” – Deus, Mundo, etc. Ou como Marx, que a tornou estruturalmente ligada à sociedade capitalista de mercado, pelo fetichismo e pela reificação – a ideologia.

Em nossos dias – a exemplo do que ocorreu com os medievais –, desenvolvemos essa atividade como uma atividade de investigação da linguagem. Hoje em dia, pragmatistas e anti-representacionistas disputam terreno com realistas e representacionistas sobre temas que envolvem filosofia da linguagem, mas que são, não raro, investigações da metafísica e da epistemologia. Muito da filosofia acadêmica se faz no âmbito do rol de questões que envolvem as teorias semânticas e disputas entre realismo e não realismo. A filosofia acadêmica (talvez no caso da filosofia, o nome Academia tenha mais história para contar do que em outras áreas) se tornou uma área técnica, antes de professores especialistas do que de “grandes filósofos”. Mesmo a área moral, que era o campo de Sócrates, ao se transformar no campo da ética passou a ser assim vista. Mas, isso não significa que a filosofia tenha se resumido a isso.

Há ainda filósofos que seguem a atividade de se livrar de erros, e não dão muito crédito para a conversa sobre a Caverna ou sobre questões que nos levariam a achar, parmenedianamente, que temos na estrutura do vivido o “caminho da verdade” e o “caminho da opinião” conjuntamente. Esses filósofos, não raro, são aqueles filósofos que até podem levar adiante a atividade técnica, platônica, mas que estão preocupados também em entrar no debate sobre temas mundanos – problemas das indústrias, de administração, de sexo, bebida, drogas, amor, guerra, dinheiro, inflação, governabilidade, bondade, histórias em quadrinhos, internet, TV, glândulas mamárias, HIV, loterias, comunismo etc. Eles querem se informar e querem informar outros. Acham que a informação traz formação e conhecimento autêntico, e conhecimento é virtude. São socráticos.

3. A Clínica que não há

A atividade da clínica em filosofia, uma vez ligada às revistas que querem dar saberes para alguns viverem melhor, está articulada a um pouco de orientalismo que poderíamos encontrar na atividade de Sócrates, antes que da de Platão. Talvez essa modinha de “filosofia para a felicidade” seja um restinho de orientalismo dos anos sessenta, um cheiro de vovós que viveram no tempo dos hippies e que contam (mentirosamente) que participaram do “Maio de 68”. Elas teriam feito melhor caso tivessem comprado um calendário da Seicho No Ie. Mas, infelizmente, abriram “casas do saber”. E há professores de filosofia nisso! Para professor, antes que para filósofo, emprego é emprego. Há muito essa gente confundiu work com job.

Todavia, todo cuidado aqui, nessa crítica, é pouco. A filosofia como um saber eminentemente prático é algo do Oriente, certamente. Mas, no caso de Sócrates, a atividade prática é, ainda, uma atividade investigativa. Nisso reside seu ocidentalismo. Sócrates não colocou a razão prática sobre a razão teórica. Aliás, ele não participou dessa divisão kantiana. Ele se manteve na idéia de que virtude é conhecimento, e que o saber leva a agir de modo mais correto. Assim, a “vida examinada” que “merece ser vivida” não é uma vida que deveria passar no exame moral, é uma vida que precisaria passar em um exame moral que é, antes de tudo, um contínuo exame intelectual.

Aqui as coisas ficam facilitadas para a idéia de filosofia clínica. Seria correto imaginar uma “filosofia clínica” não como resultado de uma “formação acadêmica”, um “cursinho” ou um “curso de especialização”, e sim como uma possibilidade a partir de uma via socrática. Nesse caso, então, sairíamos do puro charlatanismo que existe no Brasil com o nome de “filosofia clínica” e voltaríamos para uma autêntica filosofia. Ora, teríamos, então, a própria filosofia em uma de suas vertentes, e não precisaríamos adjetivar o nome filosofia. Mas, a essa altura do campeonato, é besteira pensar nessa possibilidade, pois o equívoco já dominou o território nacional.

A adjetivação do nome filosofia com o termo clínica é um sinal que diz muito: o “clínico” aparece na frente do nome “filósofo” exatamente como um tiro pela culatra. Ele termina por revelar a verdade que não deveria aparecer: eis alguém que não é filósofo, é filósofo clínico. Como o termo “filósofo” já inclui as possibilidades da clínica, levada seriamente (socraticamente), quando o termo “clínico” aparece como predicado está aí a revelação de que não estamos diante de um filósofo. O filósofo clínico não é mais que o filósofo, ele é menos. Assim era com “filósofo da educação” no passado. Assim aparece, de vez em quando, com “filósofo de crianças”. Em todos esses casos o predicado mostra que não se está diante de um filósofo, e sim de alguém que gostaria de ser filósofo, mas não conseguiu.

O filósofo é filósofo. No mundo atual ele é aquele que se dá bem com os problemas técnicos e, também, com as questões de informação. Ele é uma união entre Sócrates e Platão. Ora, o próprio Platão literato era assim, e ao pegarmos sua obra completa podemos ver com tranqüilidade um pensador que revela essa união. Assim, foram filósofos Sartre, Pedro Abelardo, Dewey, Rorty, Santo Agostinho, Habermas e Derrida. Poderia citar outros, mas exemplos já mostram como age um filósofo autêntico, aquele que é capaz de ser platônico e socrático quase ao mesmo tempo.

Paulo Ghiraldelli Jr. “O filósofo da cidade de São Paulo”.



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