13 de outubro de 2009

Sócrates: a fé e o conhecimento

Foi Karl Popper quem me aconselhou a ler a “Apologia de Sócrates”. Indiretamente, é claro, devido ao elogio que faz dessa obra (“o mais belo escrito filosófico que conheço”), num belo ensaio intitulado “Sobre conhecimento e ignorância”. Depois de ler e reler o texto platônico, só posso concordar com o autor de “A sociedade aberta e seus inimigos”. Porém, deixo de lado a beleza da “Apologia”, para ressaltar sua importância.

A obra contém em si todos os fundamentos da filosofia. Suponha, por hipótese, que se perdesse toda a literatura filosófica clássica, isto é, os textos dos pré-socráticos, os de Platão e de Aristóteles, menos a “Apologia”. Pois bem, seria possível que o pensamento filosófico se reconstituísse, da mesma maneira que se desenvolveu no Ocidente, exclusivamente a partir da leitura de “Apologia de Sócrates”, pois nela está muito bem delineado o porquê de filosofar e como fazê-lo. Em poucas palavras, diante de um problema a ser solucionado (a enigmática declaração do oráculo), Sócrates empreende um questionamento obstinado e sistemático.

É impressionante como um texto tão breve consegue ser tão rico! Tenho certeza de que, a cada leitura da “Apologia”, podem-se encontrar novos “encantos parciais”, para recorrer à feliz expressão de Jorge Luís Borges. Por exemplo, mal se inicia o discurso de Sócrates diante dos atenienses e já se delineia uma questão candente sobre a sofística e a filosofia, sobre o discurso que visa a convencer e aquele que busca a verdade: “Pela minha parte”, diz o acusado, “ao ouvi-los [os acusadores], estive quase a esquecer-me de quem sou, a tal ponto eles foram persuasivos. E no entanto, se assim me posso exprimir, não disseram uma só palavra verdadeira”.

Para Popper, o cerne da “Apologia” é a lição de modéstia passada por Sócrates (“só sei que nada sei”), o reconhecimento da própria ignorância, que ele considera uma atitude basilar da atividade filosófica. É essa a atitude que permite encarar os problemas sem ilusões nem preconceitos e divisá-los em sua dimensão objetiva, uma vez que o sujeito que os encara se abstém de projetar neles uma sabedoria que, de facto, não têm. É essa atitude, portanto, a única maneira de encontrar efetivas soluções para qualquer problemática.

Convém lembrar que também surpreende e comove a confissão que faz o mais sábio dos atenienses, ao revelar que a sabedoria se encontra no conhecimento da própria ignorância. É desconcertante a honestidade socrática, especialmente para nós, que vivemos numa época em que declarar a própria ignorância parece, além de desonroso, inadmissivelmente ingênuo. Trata-se,sem dúvida, de uma atualíssima lição que nos lança o velho Sócrates, desde sua remota Atenas.

Há, contudo, na “Apologia” dois elementos que eu gostaria de ressaltar. O primeiro, por sua atualidade, é o fato de Sócrates inserir a atividade filosófica na existência do homem, prenunciando talvez, mais uma vez desde sua remota Atenas, o existencialismo de Jaspers e Ortega. Sócrates nega que o filosofar seja ocupar-se “dos fenômenos celestes, do que se passa por baixo da terra, de fazer prevalecer sobre as boas as causas más”. Sustenta, ao contrário, que ele é a preocupação “com o que há em ti [em nós] de racional, com a verdade e com a maneira de tornar a tua [a nossa] alma o melhor possível”.

O segundo, que a mim, como cristão, particularmente agrada, é o fato de Sócrates evidenciar a importância da fé na busca do conhecimento. Com efeito, fica claro na “Apologia” que, para Sócrates, a fé é o ponto de partida e que o grego concorda antecipadamente com o Credo ut intelligan ("Creio para entender"), de Santo Anselmo. É por crer nas palavras do oráculo, segundo as quais não havia ninguém mais sábio do que ele em Atenas, que Sócrates dá início a sua busca. Eis o que ele pensa, ao tomar conhecimento do oráculo:

“Que quererá dizer o deus? Que pretende ele dar a entender? Sei muito bem que não sou sábio, nem muito nem pouco. Que quer ele dizer quando afirma que sou o mais sábio dos homens? Porque enfim ele não está a mentir; não lhe é lícito fazê-lo”. O grifo é meu e evidencia a fé do filósofo. Ele confia em que o oráculo não mente, embora saiba que ele, Sócrates, não é sábio. Então, para compreender o sentido das palavras – verdadeiras – do oráculo, dá início a sua investigação.

Colaborador:Rodney Eloy

Fonte:Observatório de Piratininga

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi Roberson,
Eu não li a Apologia de Sócrates, mas pude ter uma idéia de seu valor filosófico, ao ler este seu artigo.
A Fé é capaz de transcender os nossos sentimentos, os nossos sentidos, os nossos pensamentos e, então, de ordenar as nossas idéias, renovando-nos e causando uma sensação de alívio perante questionamentos, por exemplo. Como se a resposta estivesse pronta há tempos ou que aquela questão perdesse o sentido em existir.
Beijos,
Ana Lúcia.