6 de julho de 2010

200 anos de cinismo

O discurso moral da modernidade entrou em declínio após a Revolução Francesa, ao passo que um tipo específico de cinismo começava a emergir no cenário literário e filosófico do mundo contemporâneo. Durante esse momento crítico de passagem da idade Moderna para a Contemporânea, o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), no auge de sua maturidade intelectual, investigou o problema da moralidade na nova era, revelando como o nascimento do cínico teve lugar no ninho de contradições formado pelos postulados da moral kantiana.

Esse é o tema central do livro Eclipse da moral – Kant, Hegel e o nascimento do cinismo contemporâneo, de Sílvio Rosa Filho, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A obra, lançada em maio com apoio da FAPESP na modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicações, é fruto de mais de 15 anos de trabalho.

De acordo com Sílvio Rosa, o livro procura organizar o repertório que torna possível reformular o debate sobre o problema da moralidade naquele período de transição. Entre 1807 e 1817, Hegel estudou intensamente o processo de declínio do discurso moral da modernidade e estabeleceu conexões entre a abstração moral kantiana e outras abstrações conjunturais, oferecendo um depoimento histórico e conceitual de sua época.

A ideia do livro surgiu durante a graduação de Sílvio Rosa na Universidade de São Paulo (USP), a partir de uma proposta do professor Paulo Arantes, que ministrava um curso sobre Hegel na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas (FFLCH). Mais tarde, em seu doutorado, orientado por Arantes, Sílvio Rosa consolidou a pesquisa procedendo, segundo os termos de Arantes, à "remontagem de um dos passos mais vertiginosos da dialética hegeliana". Essa interpretação do pensamento de Hegel permite entrever uma galeria conceitual de microfiguras cínicas que surgiram a partir de uma inversão da moral kantiana.

O livro é organizado em duas partes: “Transição ao novo tempo” e “Reviravoltas do discurso moral”. “A primeira parte consiste em uma abordagem histórica, que estuda a maneira pela qual Hegel consegue abarcar a transição do moderno ao contemporâneo, concluindo que o discurso moral tende à inocuidade. A partir daí, na segunda parte, tento mostrar como Hegel trata cada um dos três pontos de incidência de sua crítica à moral kantiana: ela é formal, inefetiva e contraditória”, disse Sílvio Rosa à Agência FAPESP.

Na primeira parte, Sílvio Rosa trata a transição aos novos tempos em quatro níveis. O primeiro é o nível das representações que flutuam na superfície da época, oscilam e se alternam: a representação nostálgica, a exaltada, a moderada e a romântica.

“Essa camada superficial, feita de ondulações, é seguida de três outras. A segunda diz respeito à maneira como Hegel concebe a abstração da economia. A terceira corresponde à abstração política e a quarta se refere à abstração cultural”, explicou.

Em relação à segunda camada, Sílvio Rosa acompanhou o testemunho oferecido por Hegel – desde sua juventude até os manuscritos de Heidelberg, em 1817 – sobre a mudança de patamar da abstração da economia.

“Ao ter contato com a economia política britânica, ele se deu conta de que havia um tipo de abstração muito peculiar à economia moderna, entendida como divisão do trabalho. Entendeu que se tratava de uma mudança de patamar, cujo avanço iria redundar na Revolução Industrial. Esse é um abalo sísmico que o pensamento hegeliano documenta e eleva ao plano conceitual”, disse.

Outro “abalo sísmico” teria sido responsável pela chegada da abstração ao poder político: a Revolução Francesa. “Um dos capítulos debate esse tema: Hegel, leitor de Kant, testemunha a Revolução Francesa e coloca em debate a chegada da liberdade absoluta no exercício do poder com o terrorismo de Estado”, disse.

A abstração no plano da cultura é discutida em torno da primeira literatura romântica alemã, que iria se politizar aceleradamente, formando uma frente de resistência à Revolução Francesa. Um grupo de 70 intelectuais que incluía poetas como August Schlegel (1767-1845) e Novalis (1772-1801) se converteria em 1815 ao catolicismo monarquista, apostando na restauração e na contrarrevolução. Enquanto isso, Hegel mostra uma espécie de fidelidade estrutural à revolução, apostando na reforma alemã, tendo como horizonte os valores oriundos da Revolução.

Moralidade em xeque

“Com isso se completa o quadro de transição para a contemporaneidade. A moldura para esse quadro seria a ideia de Kant, exposta na Crítica da razão prática, segundo a qual seria possível calcular a conduta do homem no futuro como quem calcula um eclipse, afirmando, entretanto, que o homem é livre. Dessa forma, o debate que está em jogo trata de calcular as determinações políticas, econômicas e culturais como se fosse um fenômeno físico e, apesar disso, tenta afirmar a liberdade humana, colocando assim sobre o homem a responsabilidade histórica e moral por seus atos”, explicou Sílvio Rosa.

A partir desse quadro, com os tempos modernos assim constituídos, com tal conjunto de abstrações e contradições, a crítica de Hegel identifica a inocuidade do discurso moral. Essa crítica, segundo o professor da Unifesp, tem três pontos de incidência. Em primeiro lugar o discurso moral é formal e vazio, enquanto os tempos modernos avançam como um colosso avassalador que toma conta do planeta.

“O segundo ponto de incidência é que, se o colosso avança dessa maneira, a política tende a se tornar tão inefetiva como Dom Quixote diante dos moinhos de vento. Em terceiro lugar, essa moralidade formal kantiana é um ninho de contradições. A segunda parte do livro é uma tentativa de mostrar como Hegel aborda cada um desses pontos de incidência: o formalismo, a inefetividade e a contradição”, explicou.

No ponto de incidência da contradição aparecem as nove microfiguras concebidas por Hegel na interpretação de Sílvio Rosa como inversões da moral kantiana.

“Hegel não diz que Kant inverte a moral, mas que há uma espécie de transformação da matéria-prima do discurso moral. A maneira pela qual a moral é lida e estimada é que dissolve a própria moral em reviravoltas que correspondem as essas microfiguras. É desse ‘álbum de microfiguras’ da moral invertida que vai nascer o cinismo contemporâneo”, disse.

Coleção de microfiguras

Três microfiguras se situam na região do primeiro postulado kantiano, que diz respeito ao arbítrio: se a lei moral for escolhida por falta de opção, deixa de ser moral. Essas microfiguras são o “ativismo supérfluo”, o “protelacionismo” e o “ascetismo provisório”.

“Quando a moral enfrenta a realidade efetiva do mundo, o ativismo se mostra supérfluo. Quando não se consegue realizar com o ativismo o que se poderia realizar moralmente, a estratégia é adiar a ação, daí o ‘protelacionismo’. A última microfigura soluciona seu compromisso com a moral se aproximando de uma das duas anteriores: ou assume que o fim-último não pode ser levado a termo, ou sustenta que a consciência moral deve ser ‘para si’”, disse Sílvio Rosa.

O segundo bloco de microfiguras corresponde ao segundo postulado da moral kantiana, relacionado à imortalidade da alma: o “perfeccionismo interior”, o “amoralismo exterior” e o “attentisme permanente”.

“O perfeccionista interior é aquele que foi derrotado na tentativa de realização da liberdade e passa a cultivar um aperfeiçoamento moral restrito a sua própria alma. Quem veste a máscara do amoralista exterior diz que não há muito o que fazer. A última máscara ou microfigura tem o nome derivado do verbo francês ‘attendre’, que, significando 'esperar', expressa uma atitude política. Trata-se de um ‘expectacionismo’: essa microfigura fica na expectativa que as coisas mudem por si sós”, explicou.

O terceiro postulado kantiano – que afirma a existência de Deus – é o campo das três últimas microfiguras: o “sagracionismo secular”, o “sincretismo inefetivo” e a “hipocrisia externada”.

“A primeira máscara corresponde a uma teologia vulgar tendendo ao conformismo: ‘o curso do mundo é esse, Deus fez assim’. O sincrético inefetivo é aquele que tenta recompor uma realidade moral que há muito foi estilhaçada. A última microfigura coroa todo esse desenvolvimento, refazendo todos os deslocamentos da moral por cada uma dessas máscaras. Vale lembrar que a própria palavra ‘hipócrita’ significa ‘ator’ e ‘mascarado’ em grego”, disse.

Nasce o novo cínico

Mas essa última microfigura, segundo Sílvrio Rosa, não é um hipócrita qualquer. O atributo que o acompanha é a exteriorização dessa hipocrisia.

“Trata-se, desta vez, de um hipócrita curioso, que não dissimula sua hipocrisia. Aqui, estamos no ninho de nascimento do cinismo. Vamos entender cinismo como aquilo que exerce, por assim dizer, um tipo de sinceridade indesejada na simulação. Em um primeiro momento, esse cinismo ainda repassa por todas essas máscaras: é o cinismo nascente, ou ingênuo. Depois, o cínico chega à sua maioridade e seu discurso transforma-se em uma espécie de estilo que transfigura suas contradições”, disse.

Sílvio Rosa destaca que a definição de cinismo para os monges medievais é a pessoa que diz a verdade para causar danos aos outros. “Essa é uma noção até certo ponto vulgar sobre o cinismo. Mas é próxima da visão de Hegel sobre o que ocorreu quando se completava a transição para os tempos modernos. O resultado é um mundo amoral”, apontou.

O autor conta ter estudado como Hegel se viu às voltas com essas nove microfiguras abstratas. Mas, de certa forma, não há lugar para elas no sistema hegeliano, que defende uma vida não moralista, mas ética. "Por outro lado, elas se prestam a aprimorar o uso do discurso em níveis distintos de elaboração: primeiro sob o modo da mimesis; em seguida, sob o do amaneiramento; por fim, sob o do estilo."

“A partir de 1817, Hegel começa a integrar essas personagens à filosofia do direito e elas se dissolvem no interior de seu sistema. Hegel absorve, assimila, dissolve e, de certa maneira, abandona essas microfiguras. Procurei estudar esse momento em que ele não tinha ainda a certeza de integrá-las ao seu sistema. Por outro lado, o livro toma distâncias da imagem habitual de Hegel – como autor de uma filosofia da liberdade e do progresso na história – para enxergar no filósofo uma testemunha histórica e conceitual de sua época”, disse Sílvio Rosa.

Colaborador:Rodney Eloy

Fonte:Fapesp

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