5 de julho de 2010

A angústia kierkegaardiana


Considerações Iniciais


A teologia tem como objeto a verdade cristã revelada. Essa verdade não é algo objetivo e estanque da vida individual. A teologia se preocupa com a apropriação da verdade cristã pelo indivíduo. Seu objetivo último é provocar um “tornar-se” na individualidade de cada pessoa cristã, o que Lutero diria sobre “ser um Cristo para outros”. O teólogo Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855) fala em “ser a verdade”. Esse “ser a verdade” ou “tornar-se cristão” é um processo continuo que acontece dentro da descontinuidade e ambigüidade da vida pessoal do ser humano. Ele carrega implicações éticas, mas estas não são meramente racionais e objetivas; elas englobam a subjetividade humana.
A teologia se preocupa com a subjetividade humana. Assim, torna-se imprescindível abordar o conceito de angústia, pois, segundo Kierkegaard, a angústia precede o momento de ruptura na vida de cada pessoa. Ela impulsiona o indivíduo a um novo estado e, por sua vez, ela o acompanha no confronto com a nova realidade, nas decisões e situações, principalmente, se elas são distintas daquelas que o indivíduo esperava e, na grande maioria das vezes, são.
Nesse sentido, Kierkegaard fez uma das maiores contribuições para a teologia pós-moderna, pois ele procurava olhar para a sua vida e ver a teologia refletindo nela (o que lhe deixava angustiado) por ter em sua vida individual uma possibilidade de reflexão teológica. É assim que se descobre que a fé não é uma realidade de certezas absolutas, mas é a “certeza interior que antecipa a infinitude”1. Desse modo, Kierkegaard nos convida a nos escandalizarmos, a partir do evangelho, diante da realidade cômoda que nos cerca.

Aspectos sobre a Obra



O livro O Conceito de Angústia foi publicado no dia 17 de junho de 1844, quatro dias após a publicação de Migalhas Filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus e no mesmo dia de Prefácios. As três obras são publicadas por diferentes pseudônimos: Vigilius Haufniensis, Johannes Climacus e Nicolaus Notabene, respectivamente2.
Nesta obra, Vigilius Haufniensis (ou o vigia de Copenhague) aborda psicologicamente o conceito de angústia como pressuposto e conseqüência do pecado original, desconsiderando o pecado como um fato e concebendo-o apenas enquanto possibilidade: “O que pode ocupar a psicologia e com o qual ela pode se ocupar é como o pecado pode surgir e não que ele surja”3. Na psicologia, o estado afetivo do pecado é a angústia4.
O livro faz um estudo aprofundado da angústia em todos os âmbitos A obra está, portanto, sistematizada da seguinte maneira: a) Angústia como pressuposto do pecado original; b) Angústia como o pecado original em progresso; c) Angústia como continuação daquele pecado que consiste na falta de consciência do pecado; d) Angústia do pecado ou angústia como continuação do pecado no indivíduo e e) Angústia como meio de salvação.

Angústia e Indivíduo



A inocência que antecede a história individual e universal
Para que se torne possível compreender o conceito de angústia e a ela mesma como condição da própria existência humana, há de se ter claro como acontece a história da vida do indivíduo. Diante desse pressuposto, talvez esta seja a primeira afirmação possível: que a angústia é individual e pertence somente ao indivíduo enquanto indivíduo.
Segundo Kierkegaard, “a história da vida individual avança num movimento de estado a estado. Cada estado é posto através de um salto”5. O primeiro estado da vida do indivíduo é a inocência. No entanto, ela antecede a própria história do indivíduo e, por isso, não pode ser considerada como o primeiro estado da história. Na inocência, não há o conhecimento da diferença entre o bem e o mal. “A narrativa de Gênesis [Gn 3] dá a explicação correta da inocência. Inocência é desconhecimento”6. Se a inocência é desconhecimento, não há o conhecimento do estado da inocência e, por isso, não há história a partir dela. O conhecimento, acerca do estado da inocência, surge quando se perde a inocência, quando se passa do estado de desconhecimento para o estado de conhecimento. Isso ocorre por meio de um salto qualitativo do indivíduo7. A inocência se perde por meio da culpa8. No entanto, para entender isso, é necessário saber antes o que acontece no estado da inocência.
Segundo Kierkegaard, o ser humano é constituído de uma síntese entre alma e corpo, sustentado por um terceiro elemento, que é o espírito9. No estado da inocência, o espírito está sonhando, i. é, não está posta a diferença entre “meu eu” e “meu outro”; em outras palavras, não há a consciência de si mesmo10. O que há nesse estado, então? Não há absolutamente nada. Na inocência, o indivíduo se vê diante do nada. Esse nada faz com que o ser humano projete sua própria realidade. No entanto, essa realidade não é real; ela se encontra distante, além dele mesmo. Diante disso, surge a angústia:
Neste estado [da inocência] há paz e descanso; mas aí também ainda há, ao mesmo tempo, outra coisa, que não é nem discórdia, nem conflito; pois não há nada aí para brigar. O que há então? Nada. Mas qual efeito tem o nada? Ele dá a luz à angústia. Este é o profundo mistério da inocência: ela é simultaneamente angústia. Sonhando, o espírito projeta sua própria realidade, mas essa realidade é nada e a inocência vê esse nada continuamente fora de si.[...] A realidade do espírito mostra-se continuamente como uma forma que atrai sua possibilidade, todavia ela desaparece, tão logo que essa a agarra; é um nada, que nada pode, a não ser, angustiar. Mais ela não pode, enquanto ela meramente se mostra.11
Portanto, a angústia está intrinsecamente vinculada à possibilidade. Uma possibilidade é uma variável indefinida. Ela não é conhecida realmente, bem como suas conseqüências. É uma incerteza que possui junto de si outras variáveis indefinidas. Entre as inúmeras possibilidades, está a possibilidade da realidade da liberdade, que é almejada pelo ser humano. Entretanto, essa realidade não existe, ela existe apenas como possibilidade. Diante dessa situação, há uma inquietude que atrai e repulsa, que ama e teme. Essa inquietude ambígua é a angústia. Desse modo, a angústia se difere do medo e de outras reações psicossomáticas que atingem o indivíduo em sua existência, pois ela não está diante de algo determinado, mas de algo que pode ser possível12. A angústia é, pois, “a realidade da liberdade como possibilidade para a possibilidade”13. Segundo Kierkegaard,
[...] a possibilidade da liberdade não é poder escolher entre o bem e o mal. [...] A possibilidade é o poder. Num sistema lógico é bem cômodo dizer que a possibilidade transforma-se na realidade. Na realidade, isso não é assim tão fácil e precisa-se de uma determinação intermediária. Essa determinação intermediária é a angústia, que tampouco explica o salto qualitativo como o justifica eticamente. A angústia não é nenhuma determinação da necessidade, mas também nenhuma da liberdade, ela é uma liberdade cativa, onde a liberdade em si mesma não é livre, mas sim cativa, não na necessidade, mas sim em si mesma.14
A reação diante de uma possibilidade é sempre ambígua, pois ela não é uma variável definida. Ela só existe como possibilidade e não como realidade. Assim, o indivíduo nunca saberá se o que ele espera dela de fato é o que vai acontecer. Ele não conhece todos os seus efeitos, todas as suas conseqüências. A relação da angústia com o seu objeto, com o nada, é ambígua. Nesses termos, a angústia torna-se uma “antipatia simpática e uma simpatia antipática”15. Ela é a responsável pelo salto qualitativo [embora não se possa explicá-lo] do desconhecimento ao conhecimento, da inocência à culpa. Assim, esse salto não representa progressão, mas ruptura e descontinuidade.
Com base na narrativa de Gn 3, Kierkegaard explica o processo da seguinte maneira: Frente à proibição de comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, Adão ficou angustiado, porque “a proibição despertou nele a possibilidade da liberdade. O que passou pela inocência como o nada da angústia, esta entrou agora nele mesmo e é aqui, em contrapartida, um nada, a possibilidade angustiosa de poder [ser capaz]”16. Adão não tem idéia alguma do que é isso que se pode, se não se pressupõe a diferença entre o bem e o mal17. “Apenas a possibilidade de poder é existente, como uma forma superior do desconhecimento e como uma expressão superior da angústia, porque, num sentido superior, é e não é, porque ela, num sentido superior, ama e foge”18. A angústia que existe aqui, i. é, no estado da inocência, não é uma culpa, nem uma carga pesada, nem um sofrimento que não se deixa harmonizar com a felicidade da inocência19.
Diante das palavras de proibição e das de sanção, a inocência de Adão é conduzida ao extremo, porque a infinita possibilidade de poder, despertada pela proibição, tem por conseqüência outra possibilidade20. Dessa situação extrema, resulta uma ação e Adão e Eva saltam para um próximo estado: o estado de culpa, de conhecimento, enfim, das conseqüências da ação que a angústia provocou21. E, assim, a história individual e universal tem seu início.

As conseqüências do salto qualitativo da inocência à culpa



Segundo os primeiros capítulos do livro de Gênesis, a história da espécie humana começou com Adão e Eva e continuou com seus descendentes. Se, no lugar de Adão e Eva, surgisse um indivíduo totalmente novo, a história da espécie não teria continuidade: haveria em seu lugar uma repetição22. Todavia, não é assim que acontece, porque há uma descendência, há uma derivação que não afeta a essência do indivíduo23. “Tão logo a relação de geração é posta, nenhum ser humano é algo supérfluo; pois cada indivíduo é ele mesmo e a espécie”24. Sendo o indivíduo ele mesmo e a espécie, o estado da inocência antecede tanto a história individual quanto a universal. No entanto, é a partir do momento em que o indivíduo tem consciência de si mesmo, em que ele discerne entre o bem e o mal, que ele se encontra inserido na história da espécie. Isso acontece através de um salto qualitativo da inocência à culpa25. É através desse salto do desconhecimento ao conhecimento que o indivíduo ingressa na história da espécie e entra na pecaminosidade.
Acerca do ingresso na pecaminosidade, Kierkegaard, aludindo ao pecado original, não faz questão de conceituar o que esse é de fato, nem o primeiro pecado de Adão, nem o de cada indivíduo posterior, pois o que se explica sobre Adão, se explica sobre qualquer indivíduo posterior e vice-versa26. Para ele, é suficiente saber que “o pecado original é o presente, a pecaminosidade”27. O pecado não é o egoísmo, “pois o egoísta é precisamente o individual, e o que esse significa, apenas o indivíduo como indivíduo pode saber”28. “O verdadeiro ego só está posto através do salto qualitativo”29. Isso significa que o egoísta nasce pelo pecado e no pecado, o egoísmo não pode ser, portanto, pecado30. O que Kierkegaard quer deixar claro é que o pecado transcende à razão; esta não consegue compreendê-lo e agarrá-lo, pois, caso conseguisse, ninguém pecaria. “O pecado é, agora, precisamente aquela transcendência, aquela transição crítica (discrimen rerum), na qual o pecado entra no indivíduo como indivíduo”31.
O que Kierkegaard faz é criticar toda a forma de superficialidade e de isenção de responsabilidade que o indivíduo posterior e suas ciências (entre elas, a Dogmática) visam defender32. Por isso, ele afirma que o conceito de pecado não tem um lugar específico em ciência alguma33. Aqui, apenas uma constatação é possível: “o pecado veio ao mundo através de um pecado”34. Se o pecado veio ao mundo através de um pecado, presume-se que o pecado é precedido pelo pecado. Essa contradição é a interpretação que revela uma conseqüência dialética, a única que dá razão tanto ao salto quanto à imanência35. Nesse sentido, seria mais exato afirmar que, “através do primeiro pecado, a pecaminosidade entrou em Adão”36.
Segundo Kierkegaard, o pecado entra no mundo através de um salto qualitativo. Através do primeiro pecado, o indivíduo entra na pecaminosidade, assim foi com Adão e assim é com cada indivíduo posterior37. Não obstante, a espécie não começa com cada novo indivíduo que nasce, mas continua, logo, ela tem uma história e isso também acontece com a pecaminosidade38.
Dizer que a pecaminosidade começou com Adão é só uma reflexão acidental e não afeta o todo39, i. e, que o ser humano entra na história e na pecaminosidade a partir dele mesmo40, a partir do salto que sua angústia provoca e o conduz a um outro estado. Quando se afirma que Adão introduz o pecado na espécie, além de pô-lo em si mesmo, há de se ter claro que o conceito de espécie é muito abstrato para comportar uma categoria tão concreta como o pecado. Este é posto precisamente porque o próprio indivíduo o coloca enquanto indivíduo41. Assim, “a pecaminosidade na espécie torna-se, pois, apenas uma aproximação quantitativa, mas essa tem seu começo com Adão”42. De qualquer forma, quais foram as conseqüências desse salto da inocência à culpa?
Em primeiro lugar, foi estabelecida a sexualidade. A diferença sexual entre homem e mulher existia na inocência, o que é evidente em Adão e Eva. Não obstante, essa diferença era desconhecida por eles, assim como acontece com os bebês. Quando acontece o primeiro salto do indivíduo passa do desconhecimento ao conhecimento, a primeira descoberta é a diferença sexual. Com ela, o indivíduo descobre a sua temporalidade. Pelo cristianismo, a sexualidade foi vista como pecaminosidade, mas o ato sexual não é pecaminoso. “A pecaminosidade não é, pois, a sensualidade, de modo algum, mas, sem pecado não há sexualidade e sem sexualidade não há história”43.
Em segundo lugar, a angústia no indivíduo se move em determinações quantitativas, assim como a história e a pecaminosidade da espécie44. A partir do momento em que o indivíduo discerne entre o bem e o mal, ele se vê numa realidade em que não se é livre, numa realidade de pecado, que, novamente, antecede a possibilidade de liberdade. Por se encontrar numa realidade indesejada, o indivíduo sente angústia, ele se vê culpado:
Que a angústia é, no indivíduo posterior, mais refletida, em conseqüência de sua participação na história da espécie, a qual é comparada com o costume – que é a outra natureza, todavia não é nenhuma nova qualidade, mas sim meramente uma progressão quantitativa – vem do fato de que a angústia vem ao mundo daqui por diante com um outro sentido. O pecado entrou com a angústia, mas, por sua vez, o pecado trouxe consigo a angústia pois a realidade do pecado é mesmo uma realidade que não tem existência. Por um lado, a continuidade do pecado em si é a possibilidade que angustia; por outro lado, é a possibilidade de uma salvação, em compensação, que angustia; e ainda a possibilidade de uma salvação, em compensação, é um nada, o qual o indivíduo ama assim como teme; pois isto é continuamente a relação da possibilidade com a individualidade. Somente no instante em que a salvação realmente está posta, somente então essa angústia é superada. [...] A angústia que o pecado traz consigo, em sentido rigoroso, só existe quando o indivíduo mesmo põe o pecado. Mas, em todo caso, está presente de uma maneira obscura como um mais ou menos na história quantitativa da espécie. Por isso tropeça-se também neste caso com o fenômeno de um homem que parece tornar-se culpado meramente por angústia de si mesmo, coisa que não se poderia dizer de Adão. É certo que, apesar disso, todo indivíduo só se torna culpado por si mesmo [...].45
A angústia, portanto, é condição para a existência humana. A angústia que se encontra no estado da inocência possibilita o salto qualitativo e, conseqüentemente, a existência humana dentro de sua história e de sua temporalidade. Ela torna possível ao ser humano conhecer-se e reconhecer-se como tal, como indivíduo e, ao mesmo, tempo, como parte da espécie humana. A partir do salto qualitativo, a angústia não abandona o ser humano, mas o acompanha em sua jornada de vida, provocando novos saltos, que colocam o indivíduo em outros estados dentro de sua história individual. Por isso, a angústia pode ser compreendida em dois aspectos distintos: “A angústia na qual o indivíduo põe o pecado por meio do salto qualitativo e a angústia que entrou e entra com o pecado, nesse ponto, também vem quantativamente ao mundo, a cada vez que o indivíduo põe o pecado”46. O que implica esse segundo sentido atribuído à angústia, será o próximo passo desta pesquisa.

A angústia na história da vida individual



Na história da vida individual, a angústia retorna como conseqüência do pecado e seus efeitos se refletem em todo o ambiente em que o ser humano vive e com quem se relaciona, i. é, com toda a criação. Aqui Kierkegaard faz uma distinção entre a angústia subjetiva e angústia objetiva. Segundo o teólogo e filósofo, a primeira está relacionada ao indivíduo, como conseqüência de seu pecado, e se refere àquela que está presente no estado da inocência e a segunda é o reflexo da pecaminosidade da espécie humana na criação inteira47.
Segundo Kierkegaard, a angústia, no indivíduo posterior, é mais reflexiva que em Adão, pois o nada, que é o objeto da angústia, parece se tornar algo, embora não se torne de fato48. Isso acontece porque o indivíduo posterior já se encontra inserido numa história que não começou com ele: a história da espécie. Ele carrega, em sua bagagem, a conseqüência da relação de geração e a conseqüência da relação histórica49.
A primeira conseqüência se refere à derivação quantitativa da espécie e, por isso, ao aumento da angústia de forma progressiva na descendência. A diferença entre o primeiro indivíduo e o indivíduo posterior é a derivação, que dá um mais ao indivíduo posterior, mas essa diferença é apenas quantitativa. Quanto maior ela for, maior será o espaço que a angústia terá na possibilidade de liberdade50. Já, a segunda conseqüência se refere à continuidade da história e ao conhecimento adquirido com o passar do tempo. Ao adquirir a consciência de si mesmo e descobrir-se inserido num ambiente histórico, a sensualidade poderá significar pecaminosidade para o indivíduo, mesmo que para este não signifique isso51. Ambas as conseqüências estão relacionadas à sensualidade posta como pecaminosidade e visam, em última instância, ressaltar que o ser humano aprende o que é pecaminoso, a partir do momento em que tem o conhecimento do bem e do mal.
Esses pressupostos existentes no indivíduo tornam sua angústia mais e mais reflexiva e, quanto mais reflexiva for, tanto mais pode converter-se em culpa52. O nada da angústia, que parece tornar-se algo no indivíduo posterior, não é realmente algo, nem precisa ser o pecado ou outra coisa qualquer: “O nada da angústia é, pois, neste caso, um complexo de pressentimentos, que se refletem em si mesmo, se aproximando cada vez mais do indivíduo, ainda que, considerados essencialmente, não signifiquem nada na angústia”53. Diante disso, Kierkegaard afirma que
[...] a angústia é a vertigem da liberdade. Vertigem que surge quando o espírito, ao querer colocar a síntese, a liberdade fixa os olhos no abismo de sua própria possibilidade e lança mão da finitude para sustentar-se. Nesta vertigem, a liberdade cai desmaiada. [...] No mesmo instante, tudo se modifica e quando a liberdade ergue-se novamente vê que é culpada. Entre estes dois momentos está o salto que nenhuma ciência explicou nem pode explicar. A culpa daquele que se torna culpado no meio da angústia é ambígua até não poder mais [sic].54
No entanto, o ser humano não é apenas uma síntese do psíquico e do corpóreo sustentada pelo espírito, mas é, ao mesmo tempo, uma síntese entre o temporal e o eterno, sustentada pelo instante55. O instante (Augenblick) é o ponto em que o temporal se encontra com o eterno e, somente quando o instante é posto, a vida humana tem seu começo56. A partir do momento em que se põe um ponto fixo em sua linha infinita, o tempo só pode ser medido e delimitado em passado e futuro. Esse ponto é o instante57. “O instante designa o presente como aquele que não tem passado e nem futuro; nisso se encontra a imperfeição da vida sensual. O eterno designa igualmente o presente, que não tem passado nem futuro, e essa é a perfeição do eterno”58.
Em outras palavras, a existência humana é marcada pela temporalidade, mas, no instante em que a autoconsciência e a autodeterminação assumem o controle, o ser humano vislumbra o eterno. Nesse instante, o ser humano se confronta com seus limites, i é, sua temporalidade, e com suas possibilidades. Diante do futuro, tudo é possível. Essas inúmeras possibilidades que o futuro traz consigo causam angústia no indivíduo. Segundo Kierkegaard, não é possível angustiar-se do passado, a menos que haja uma relação de futuro com ela ou quando um evento passado (desgraça, falta, crime) é posto em relação dialética com a culpa. Assim o ser humano se angustia diante da possibilidade e diante do futuro:
O passado, do qual eu devo me angustiar, precisa estar numa relação de possibilidade comigo. Se me angustio de uma desgraça passada, então, neste caso, não é que ela é passada, mas sim que ela pode, neste caso, se repetir, i. é, tornar-se futura. [...] Se ela é mesmo [realmente] passada, então não posso me angustiar, mas somente me arrepender. Se eu não o faço, então eu me permiti antes fazer minha relação com ela dialética, mas com isso, a infração se tornou ela mesma uma possibilidade e não algo passado. Se me angustio diante do castigo, então este é posto somente, tão logo, numa relação dialética com a infração (caso contrário, carrego meu castigo) e, então, eu me angustio diante da possibilidade e diante do futuro.59
Na história da vida individual do ser humano posterior, o nada da angústia, que tenta sempre se tornar algo, pode significar o destino. Tendo como base o paganismo, Kierkegaard explica que “o destino é compreendido como a unidade da necessidade e da casualidade”60. O indivíduo não pode entrar em relação direta com o destino, pois, se, em um instante, o destino é o necessário, em outro instante, será o causal61. Pelo fato do destino não poder ser abraçado por completo e estar, no fundo, sempre distante, o único vínculo que existe entre o indivíduo e o destino é a relação de angústia.
Para tentar resolver sua angústia, o indivíduo procura o oráculo. No entanto, quem explica o destino, precisa ser tão ambíguo em suas respostas como o próprio destino é. Assim, ao procurar o oráculo, o indivíduo também acaba mantendo com ele uma relação de angústia, não necessariamente devido às respostas, que podem ou não ser ambíguas, mas porque ele mesmo não se aquietará mediante os conselhos do oráculo. Por um lado, ele não se permite deixar de perguntar sobre um conselho e, por outro, estará numa relação ambígua (de simpatia e antipatia) no instante da consulta62. Por fim, ele fica pensando nas respostas que o oráculo ofereceu.
Kierkegaard alude ao gênio que quer deter-se em sua imediação: indivíduo cuja toda atividade se volta para fora de si e não chega a ter significado para si mesmo. Seu domínio se concentra naquilo que o destino pode oferecer em relação com a sorte, a desgraça, a honra, o poder, ou seja, em determinações temporais63. De qualquer forma, o conceito de culpa não aparece no paganismo em seu sentido profundo, pois, caso surgisse, acarretaria numa contradição: como ser culpado por causa do destino? Diante de uma contradição assim, emerge o cristianismo 64.
O nada da angústia também pode significar a culpa na história de vida do indivíduo posterior. Tendo como base o judaísmo, Kierkegaard explica que a ambigüidade reside na tensão entre a culpa e o arrependimento. Isso poderia ser simples: uma vez posta a culpa, existe o arrependimento. Todavia, isso não funciona assim. Segundo Kierkegaard, “a vida apresenta fenômenos suficientes nos quais o indivíduo, na angústia, fita a culpa de forma quase cobiçosa e, no entanto, a teme. Aos olhos do espírito, a culpa tem o poder que o olhar da serpente possui: enfeitiçar”65. Em outras palavras, a culpa possui a mesma tensão dialética que a angústia: de simpatia e antipatia. “A culpa é um poder, que se estende a todas as direções e que, no entanto, ninguém pode compreender em seu sentido profundo, enquanto pensar insistentemente sobre a existência [Dasein]”66. Portanto, a relação do indivíduo com a culpa é uma relação de angústia.
Para tentar resolver sua angústia, o indivíduo procura o sacrifício, mas este não lhe adianta nada. O sacrifício torna-se ambíguo, pois ele deveria ser utilizado para abolir a relação da angústia com a culpa e para por em seu lugar uma relação real. Como isso não acontece, o sacrifício é repetido, o que resulta em sua maior conseqüência: a descrença sobre o ato do sacrifício67.
Kierkegaard alude ao gênio religioso, que, diferente da abordagem anterior, não quer se deter em sua imediação. Ao contrário, apenas posteriormente ele voltar-se-á para fora. Primeiramente, ele se volta em direção a si mesmo e, assim, como o gênio imediato, que recebe a companhia do destino, o gênio religioso recebe a culpa como companheira. Ao voltar-se para si mesmo, ele se volta para Deus68. “Se o espírito finito quer ver Deus, ele precisa começar como culpado. Ao voltar-se, pois, para si mesmo, ele descobre a culpa”69. Sua preocupação primitiva é ele mesmo. “A profundidade com que ele descobre a culpa, mostra que este conceito é presente para ele em sentido elevado, do mesmo modo que seu oposto, a inocência”70.
Ao voltar para dentro o gênio religioso também descobre a liberdade. Ele não teme o destino, pois o problema, para ele, não é influir para fora. Também, a liberdade é, para ele, a bem-aventurança, a liberdade que não é compreendida como alcançar algo no mundo. No entanto, quanto mais o indivíduo ascender, tanto mais custará para trazê-lo de volta. Para isso, entra em cena a culpa, pois o temor do indivíduo é ser considerado culpado, ou ser culpado. Assim, na mesma intensidade em que o indivíduo descobre a liberdade, pesa sobre ele a possibilidade, a angústia do pecado71.
O indivíduo teme somente o pecado, pois este é o único que pode lhe tirar a liberdade. Aqui a liberdade é o contrário de culpa e não de necessidade72. “A liberdade só se preocupa consigo mesma. Em sua possibilidade, a liberdade projeta a culpa, e a introduz por meio de si mesma. Porém, caso a culpa seja realmente posta, a própria culpa se põe através de si mesma”73. De qualquer forma, “somente por si mesma a liberdade pode chegar a saber se ela é liberdade ou se a culpa está colocada”74. Segundo Kierkegaard,
A relação da liberdade com a culpa é de angústia, porque a liberdade e a culpa são, todavia, uma possibilidade. Quando a liberdade fita a si mesma com toda sua cobiçada paixão e quer manter a culpa distante, de tal maneira que não se possa encontrar um floquinho dela na liberdade, ela não pode deixar de fitar a culpa. Este olhar fixo é o olhar fixo e ambíguo da angústia, assim como é o desejo da renúncia dentro da possibilidade.75
Através do salto qualitativo, o pecado veio ao mundo – e continua vindo com cada indivíduo – o salto qualitativo é a realidade. Contudo, essa realidade não é, em parte, um momento único. Trata-se de uma realidade injustificada e, por isso, a angústia retorna em uma relação com o presente (i. é, a realidade que surge com o salto qualitativo) e com o futuro. Nesse novo ambiente, o nada da angústia se torna realmente algo determinado, pois agora se conhece a diferença entre o bem e o mal. Assim, o indivíduo pode angustiar-se diante do bem ou diante do mal76.
Por um lado, o pecado é uma possibilidade desaparecida e, por sua vez, uma realidade injustificada a medida em que é introduzido no mundo. Por ser uma realidade indesejada pelo indivíduo, ela deve ser negada novamente e essa é a função da angústia. Por outro lado, o pecado traz consigo a sua conseqüência, a qual é estranha para a liberdade. Essa conseqüência se torna presente e se relaciona com a angústia do indivíduo, pois ela é, enquanto futura, a possibilidade de um novo estado (indesejado). “Quão fundo o indivíduo desce, mais fundo pode descer e esse ‘pode’ é o objeto da angústia. Quanto mais a angustia se afrouxar aqui, tanto mais significará que a conseqüência do pecado transformar-se-á em corpo e sangue para o indivíduo e que o pecado recebe direito de domicílio na individualidade”77. Portanto, o pecado não é nem abstrato, nem metafísico, possui um significado concreto. Segundo Kierkegaard,
O pecado posto é uma realidade injustificada, ela é realidade e posta pelo indivíduo como realidade no arrependimento, mas o arrependimento não se torna a liberdade do indivíduo. O arrependimento é reduzido a uma possibilidade em relação ao pecado, em outras palavras, o arrependimento não pode remediar o pecado, ele pode meramente carregar sobre si o lamento [pena, dor, Leid].78
Nessa situação, o arrependimento não consegue alcançar o pecado e as conseqüências do pecado arrastam o indivíduo. A angústia vai adiante e descobre a conseqüência antes que ela sobrevenha, de forma que cada indivíduo pode sentir que há algo errado, mas não consegue evitar que aconteça. O pecado triunfa e a angústia se aloja dos braços do arrependimento, que tenta seu último esforço. Então, o arrependimento interpreta a conseqüência do pecado como um lamento de castigo e a perdição como a conseqüência do pecado79. “[...] e a angústia absorve toda a força do arrependimento [...]”80.
Nesse sentido, Kierkegaard afirma que a fé é a única que pode combater os paralogismos da angústia, sem acabar com a angústia. Somente a fé consegue arrancar o olhar mortal da angústia à força, pois, somente na fé, a síntese é eterna e possível em todo o momento81. Em suma, quando o indivíduo vive em pecado e se torna servo dele, ele se angustia diante do mal. “A servidão do pecado é uma relação forçosa com o mal”82. De um ponto de vista superior, esta formação se encontra no bem83. Todavia, se a angústia não tiver como companheira a fé, fará com que o ser humano se perca. Uma outra situação de angústia é a angústia diante do bem.
Segundo Kierkegaard, a angústia diante do bem é o “demoníaco”. O demoníaco é um estado que se contrapõe ao estado da servidão do pecado. Trata-se da não-liberdade que quer encerrar-se em si mesma. É aquilo que está dentro do indivíduo, que é reservado e é revelado somente involuntariamente84. É o que toma o indivíduo de repente85, é o vazio, o aborrecimento86. Segundo Kierkegaard,
Na inocência, a liberdade não estava posta como liberdade, sua possibilidade era, na individualidade, angústia. No demoníaco, a relação se inverteu. A liberdade está posta como não-liberdade; pois a liberdade está perdida. Em contrapartida, a possibilidade da liberdade é aqui angústia. A diferença é absoluta, pois a possibilidade da liberdade se mostra aqui em relação com a não-liberdade, a qual é o contrário da inocência, pois esta é aqui uma determinação para a liberdade.87
O demoníaco é uma relação forçada com o bem e, por isso, só se manifesta em contato com o próprio bem. Aqui, Kierkegaard faz uso de passagens bíblicas em que o demoníaco se revela diante de Cristo, como em Mt 8.28-34. De qualquer forma, a não-liberdade pode manifestar-se em todas as esferas humanas: a psíquica, a corpórea e a espiritual. Seu alcance é muito maior do que se supõe e caso se faça presente em uma dessas esferas, seu efeito pode muito bem ser visto nas outras. Enfim, da mesma forma que se pode afirmar que todos os seres humanos são pecadores, se pode fazê-lo acerca da não-liberdade: ela possui traços em todo ser humano88.
Não obstante, engana-se quem pensa que a angústia é simplesmente uma condição da existência humana que trava o ser humano em seus limites e o conduz do sono à insônia, a sua finitude. Kierkegaard defende que o ser humano “[...] precisa aprender a se angustiar, para que ele não se sinta perdido, seja por nunca sentir angústia, seja por afundar-se na angústia. Aquele que, pelo contrário, aprendeu a angustiar-se devidamente, aprendeu o máximo”89. Segundo Kierkegaard, o cristão – embora ele não o mencione isso explicitamente – i. é, o verdadeiro cristão e não o hipócrita, é alguém educado pela angústia. Alguém educado pela angústia é alguém educado pela possibilidade90. Quem é educado pela possibilidade é educado segundo sua infinitude91. Agora, essa educação só é possível se a angústia está vinculada à fé:
Para que o indivíduo seja educado tão absolutamente e infinitamente pela possibilidade, é necessário ser honrado no tocante à possibilidade e ter fé. Por fé entendo aqui o que Hegel, à sua maneira, em alguma parte, caracteriza de: a certeza interior que antecipa a infinitude. Quando se administram de um modo ordenado os descobrimentos da possibilidade, esta descobrirá todas as limitações finitas, idealizando-as porém na forma da infinitude e mergulhará o indivíduo na angústia, até que este, por sua parte, as vença na antecipação da fé.92
O Conceito de Angústia compreende a existência humana como uma luta constante na busca por realização. Esta se encontra além da esfera temporal e “só é possível quando nos comprometemos livremente com um poder que transcende o conhecimento objetivo e a compreensão racional; assim, ‘desejando ser si mesmo, o si descansa candidamente na força que o estabeleceu’”93.
Portanto, é possível que a angústia gere um “salto qualitativo” que nos leve não ao pecado e à alienação de Deus, mas à sua antítese: fé, e não virtude, é o “oposto de pecado”. Em outras palavras, voltamos mais uma vez ao que Kierkegaard chama de “critério crucial do cristianismo” – a aceitação de uma incerteza objetiva que é inacessível à razão, mas por intermédio da qual, com ajuda divina, a salvação será encontrada.94

Considerações Finais



Diante da realidade de não-liberdade, o indivíduo se sente culpado. Ele angustia-se diante da possibilidade e diante do futuro, pelo fato da possibilidade de liberdade estar ao mesmo tempo próxima, enquanto possibilidade, e distante, enquanto realidade. Diante de uma situação assim, a angústia provoca um salto, que conduz o indivíduo a um novo estado e, neste, ele se descobre em pecado. Então, ele teme que o futuro possa se repetir. Ele procura uma forma de expiar a culpa e controlar o destino. Ele procura o arrependimento, para desfazer-se da culpa, mas não consegue, pois sua angústia rouba as forças do arrependimento. Enfim, ele se encontra num círculo vicioso do qual não pode escapar, a não ser, com a ajuda da fé.
O ser humano em sua existência e sua subjetividade não pode deixar a angústia tomar conta de sua vida, na mesma medida em que não pode viver sem ela. Segundo Kierkegaard, é necessário aprender a se angustiar, educar-se pela possibilidade e, portanto, pela sua infinitude, e isso acontece através da fé, da “certeza interior que antecipa a infinitude”. A fé não vai livrar aquele que se torna constantemente cristão de sua angústia, pois ele olhará para a realidade, perceberá suas incongruências em relação à vida cristã e a hipocrisia que separa o falatório dos líderes religiosos e da realidade em que ele vive. Ele será angustiado, pois ele é a verdade e, ao mesmo tempo, vê o quão distante está a verdade da realidade. Não obstante, o cristão não se deixa enganar, mas conserva-se firme. Assim, “a angústia converte-se num espírito servidor que não pode deixar de conduzi-lo, contra a vontade, onde ele quiser”. Quando a angústia se anuncia, o cristão lhe dá as boas-vindas e mostra-se preparado. “Então, penetra a angústia em sua alma e a esquadrinha inteiramente. Angustia e expulsa o finito e o mesquinho que há nele e finalmente o conduz onde ele quer”96. O “discípulo da possibilidade alcança a infinitude”97.
A autenticidade em tornar-se cristão é apropriar-se da verdade revelada. Um cristão não fala sobre a verdade, ele é a verdade, num constante tornar-se, que acontece, contrariando o racionalismo hegeliano, num “salto de fé”. Esse salto revela ao cristão o paradoxo da existência: Deus se manifestou num ser humano; o eterno se encontrou com o temporal. Entrementes, ao mesmo tempo em que a fé é um movimento ao absurdo, ao eterno, também é um movimento de retorno à temporalidade, concretizando-se no amor ao próximo. Isso tudo faz do cristão alguém desconcertado e, simultaneamente, desconcertante, sobretudo, inquieto. Eis a angústia na existência!




Autor: Iuri Andréas Reblin, teólogo, doutorando em teologia


Leitura de: [KIERKEGAARD, Søren A. Der Begriff Angst, Vorworte. Düsseldorf: Eugen Diederichs Verlag, 1952, p.1-169.]

Nenhum comentário: