29 de setembro de 2008

Ser-no-mundo é ser-para-a-morte

A investigação sobre a morte surge logo no início da segunda seção de Ser e Tempo. A mortalidade é a resposta encontrada por Heidegger para dar conta da totalidade do Dasein. Logo no primeiro parágrafo, Heidegger reconhece que a analítica existencial prévia apenas considerou o Dasein do ponto de vista da abertura decadente para a mediania impessoal. Em termos da existência, faltaria ainda à analítica investigar ontologicamente o poder-ser próprio, isto é, o modo de ser autêntico. Sem a investigação do poder-ser próprio, a analítica permanece incompleta. Para essa tarefa, é necessário conduzir Dasein para a situação hermenêutica prévia, mais especificamente, para sua posição prévia, a partir da qual ele pode ser evidenciado em sua totalidade. Afirma o autor: "Enquanto não se incorporar a estrutura existencial do poder-ser próprio à idéia de existência, a visão prévia, orientadora de uma interpretação existencial, ressentir-se-á de originariedade (1)" [grifo do autor].


O desafio que se coloca aqui decorre da análise da estrutura mais originária do Dasein, que dá unidade aos existenciais do ser-no-mundo: o Cuidado. Ora, sabemos que o Cuidado tem o significado ontológico de "preceder a si mesmo" [sich-vorweg-sein], estar além de si mesmo, já que Dasein, ao ser, coloca sempre em jogo seu próprio ser. O problema que tem que ser solucionado é saber se é possível, em uma análise ontológica, evidenciar a totalidade do Dasein, um ente que, em sua essência é marcado pelo inacabamento. O inacabamento do Dasein é derivado de sua postura de ser sempre suas possibilidades. Dasein só se torna um ser acabado quando suas possibilidades já se esgotaram, ou seja, na morte. A morte, e apenas a morte, é a completude do Dasein, mas aí então ele deixa de existir, deixa de ser Dasein (2). Como resolver essa aporia?


Heidegger afirma que essa dificuldade existe, mas ela é apenas aparente. Dizer que é impossível uma exposição do Dasein como ser-todo porque ele é perpassado pelo inacabamento é considerá-lo um ente simplesmente dado ao qual faltaria sempre algo que ainda não se deu, que seria o "excedente" [Ausstand, que, literalmente, significa "o que fica de fora"]. Segundo Pasqua, "Enquanto ek-siste, o Dasein não constitui uma totalidade. Ele será tudo o que pode ser, quando não houver mais excedente. Então, extenuado, esvaziado de si próprio, ele deixará de ek-sistir. Nada mais dele sairá. Assim, totalidade significa vacuidade, o todo é igual a nada (3)".


Sabemos que a incompletude é a essência do poder-ser-no-mundo. Onticamente falando, Dasein só se completa com sua morte, ou seja, Dasein só está completo quando deixa de ser-no-mundo. No entanto, do ponto de vista ontológico, podemos alcançar sua estrutura total a partir de seu poder-ser. Assim, torna-se necessário investigar ontologicamente o significado de "morte" como "fim" do Dasein. Obviamente, não podemos ter a experiência de nossa própria morte, mas podemos investigá-la como estrutura existencial.

Na análise heideggeriana, não se pode assumir a morte de ninguém, a não ser a nossa própria. Na mediania do impessoal, onde Dasein se encontra pulverizado no mundo, sempre podemos substituir alguém. Afinal, é isso o que "das Man" quase sempre faz, perdido junto às ocupações e preocupações do mundo público. É o que Heidegger chama de "convivência", ser-com-os-outros, viver impessoalmente. No entanto, existe uma possibilidade de ser que jamais podemos substituir - o chegar-ao-fim de outra existência (4).


É a morte o fenômeno que surge como possibilidade sempre minha, e apenas minha, intransferível. A morte coloca totalmente em jogo o ser de cada Dasein singular, pois é a possibilidade que extingue todas as outras possibilidades: "Há no Dasein uma 'não-totalidade' contínua e ineliminável, que encontra seu fim com a morte (5)".


Heidegger continua sua análise afirmando que todas as possibilidades de Dasein não são, de modo algum, eventos que "ainda-não" se realizaram e que simplesmente são adicionados à existência de seu exterior. Dasein não é o mero resultado da adição de todas as suas possibilidades de ser. Na verdade, Dasein é direcionado, é movido, de forma ativa e prática, para suas possibilidades, assim como um fruto verde é um fruto para-amadurecer(6). Dasein é um devir. O ponto crucial da discussão é a diferença essencial entre Dasein e o fruto que amadurece, ou melhor, entre o existir e todos os outros entes que não têm o caráter da existência: Dasein é o único ente que, em sua singularidade, existe para findar-se. O findar-se do Dasein não é apenas um evento que se dá ao término de uma existência. A morte é um fenômeno que está incrustrado no âmago de seu ser, como a possibilidade sempre presente, incontornável. Por essa razão, Heidegger afirma que o Dasein existe para o seu fim, para a sua morte: ser-no-mundo é ser-voltado-para-sua-morte, é ser-para-a-morte [Sein-zum-Tode]. Na expressão de Pasqua, Dasein é mais que mortal, é "moribundo" (1997, pp. 123-124).


Mas de que modo a morte torna-se o acontecimento fundamental para Heidegger? Ou, de modo mais analítico, por que a morte vem a ser a essência do ser-no-mundo, do Cuidado? E como a inspeção fenomenológica faz da morte o princípio de individuação do Dasein?


A resposta para essas perguntas vem a partir da conexão entre ser-para-a-morte e Cuidado. O Cuidado, como vimos, é preceder-se a si mesmo, é estar lançado no mundo, na decadência, é, em suma, projetar-se em suas possibilidades. Então, a morte surge não como uma possibilidade entre outras, nem como um mero evento que nos espreita ao fim de uma realização qualquer. A morte é uma possibilidade sui generis: é a única possibilidade que impossibilita todas as outras - de modo inescapável e iminente. Assim, a morte é um existencial, é a essência do Cuidado, é a força ativa, o Nada, que ex-pulsa Dasein de si mesmo como nenhuma outra força pode fazer. Dasein é perpetuamente lançado, projetado para sua própria morte. Em outras palavras, a morte, ontologicamente considerada, é a concretização mais original do Dasein, é a possibilidade que dá ao ser-no-mundo sua autenticidade. Ao fazer frente à própria morte, mantendo-se na Angústia, que revela a essência do Cuidado como Nada, Dasein ek-siste autenticamente, Dasein torna-se quem é, Dasein projeta-se em suas possibilidades mais próprias. Dasein individualiza-se, recupera-se da Decadência, adquire um modo de ser distinto da publicidade do impessoal, do "nós" cotidiano.


Dasein angustiado não necessariamente padece da angústia psicológica. A Angústia como disposição fundamental significa enfrentar a morte como sua possibilidade mais íntima e intransferível, pois atinge todo o seu ser. Angústia abre Dasein como ser-lançado-para-seu-fim. Por essa razão, quase sempre Dasein recusa-se a assumir quem realmente é e refugia-se da Angústia no das Man. Na publicidade do impessoal, a morte é uma realidade, mas nunca uma possibilidade que atinge o ser-no-mundo em seu âmago (7). Na maior parte das vezes, "a condição humana não se reconhece a si mesma, na sua plenitude, concretamente, porque ela tende a se encobrir diante da angústia e diante da morte(8).Na impessoalidade, "sabemos" que um dia morreremos, mas "ainda-não". Morre-se a morte alheia, mas nunca a nossa própria. Em certo sentido, na analítica heideggeriana, o mundo público parece surgir com o único intuito de escamotear a morte de cada Dasein singular. Não há espaço para singularidades na mediania do impessoal - há apenas um gigantesco "a gente".


A morte é o princípio de individuação porque é o fenômeno que singulariza cada Dasein. A aniquilação trazida pela morte faz dela a única possibilidade que impossibilita radicalmente qualquer outra possibilidade. Ao ek-sistir, em sua projeção compreensiva, Dasein realiza seus projetos. A realização de cada projeto destrói esse projeto como possibilidade. A morte, no entanto, não é uma possibilidade entre outras. Existe um abismo entre o lançar-se para a morte e o projetar-se em quaisquer outras possibilidades. O lançar-se para a morte através da abertura proporcionada pela angústia torna Dasein aquilo que ele realmente é, na sua autenticidade singular, única, irrepetível. Assim, Dasein confronta-se consigo mesmo: a morte, incrustada em seu ser, isola-o completamente do das Man, pois a morte é sempre única e exclusivamente minha. Ninguém morre a morte de outrem. Segundo Pasqua: "Morro, logo ek-sisto(9)". Dasein é moribundo, pois a morte é a possibilidade sempre eminente, uma perpétua espada de Dâmocles sobre o pescoço de cada Dasein. Em suma, Dasein vive morrendo, projetando-se em direção ao nada, ao aniquilamento.


Por esse motivo, Heidegger afirma no parágrafo 52 que "Enquanto fim do Dasein, a morte é a possibilidade mais própria, irremissível, certa e, como tal, indeterminada e insuperável do Dasein. Enquanto fim do Dasein, a morte é e está em seu ser-para o fim (10)" [itálicos do autor]. Possibilidade mais própria porque apenas o enfrentamento decisivo da morte por parte do Dasein pode fazê-lo existir autenticamente, projetando-se em suas possibilidades mais próprias: a essência de Dasein angustiado mostra-se como ser-para o fim. Dasein desencobre-se para si mesmo, modifica-se, e se singulariza como indivíduo. Irremissível, pois cada existência morre exclusivamente sua própria morte, "morrer em nome de alguém ou por alguém" ainda é morrer nossa própria morte. Certa porque a morte é a possibilidade incontornável, insuperável da existência. Finalmente, indeterminada porque não sabemos as condições ônticas de nossa morte: como, quando e onde morremos (11).


Colaboração: Prof. Drndo. Newton Pereira



1.HEIDEGGER, Ser e Tempo II, p. 11.

2.Tal problema evoca a analogia com a antiga questão de saber quando um homem pode ser considerado feliz. Heródoto narra, em sua História, que o sábio grego Sólon advertira o riquíssimo rei lídio Croisos (Creso) de que nenhum homem vivo pode ser feliz, já que os mortais podem ser golpeados pela má fortuna em qualquer momento de suas vidas. Apenas depois da morte uma vida pode ser considerada feliz e plena de significado. Na história narrada por Heródoto, o rei Croisos é derrotado na guerra movida contra o rei Ciro da Pérsia e condenado a morrer queimado em uma gigantesca pira. Croisos é salvo no último instante por Ciro, que o torna seu conselheiro particular. Conferir História, livro I, capítulos 86-87. Conferir também a história bíblica de Jó.

3.PASQUA, op. cit., p. 119.

4.No parágrafo 48 de Ser e Tempo, Heidegger utiliza a palavra "enden" para o chegar-ao-fim do Dasein, e "verenden" para o chegar-ao-fim dos entes que não têm o caráter da existência.

5.HEIDEGGER, ST II, p. 23.

6.Essa parte da discussão se aproxima bastante da metafísica aristotélica do ser como potência e ato. Afinal, estamos tratando de entes. No entanto, Dasein é um ente que se define pelo existir - seus modos de ser são existenciais, e não categorias. Tal diferença, que é crucial na concepção de Heidegger, teria escapado a Aristóteles.

7.Em sua obra Sobre a Verdade, Stein afirma que a analítica existencial heideggeriana coloca a possibilidade em um nível ontológico mais elevado que a "realidade", em mais um confronto com a metafísica. Stein mostra que, em Ser e Tempo, a liberdade ontológica, vinculada ao Dasein, é liberdade como condição de possibilidade, ou seja, é liberdade transcendental. Por esse motivo, ela é superior à liberdade efetivada, realizada, como livre-arbítrio, pois é condição para qualquer outra forma de liberdade - inclusive para a liberdade política. Conferir STEIN, Sobre a Verdade: Lições Preliminares ao parágrafo 44 de Ser e Tempo, pp. 67-68.

8.STEIN, op. cit., p. 25.

9.PASQUA, Introdução à Leitura do Ser e Tempo de Martin Heidegger, p. 129.

10.HEIDEGGER, ST II, p. 41.

11.Vale a pena lembrar-se do episódio lendário da Caixa de Pandora: segundo algumas tradições, o único mal que a primeira mulher, Pandora, conseguira manter na Caixa teria sido a expectância (conhecimento) do dia exato de nossa morte.




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